Imagem ilustrativa.| Foto: Jonathan Campos/AEN
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Nos primórdios da aviação civil, as malas postais a bordo dos bagageiros das aeronaves transportavam a notícia, a saudade e, por muitas vezes, a esperança através de milhares de cartas que chegavam a seus destinos. Enquanto a aviação evoluiu para levar passageiros e cargas de um lado ao outro do mundo de uma forma mais segura e rápida, também se tornou parte fundamental nos procedimentos de transplantes de órgãos, conectando doadores e receptores em um voo pela vida.

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Em 2023, o transporte aéreo brasileiro conduziu 7.703 operações de pouso e decolagem envolvendo alguma missão desta natureza, movimentando 4.224 órgãos para transplante, segundo dados do Ministério da Saúde. Isso representou 15% de todos os procedimentos realizados no país durante o ano passado – cerca de 29 mil. Essas operações requerem frequentemente que um ou mais profissionais de saúde acompanhem os órgãos, devidamente acondicionados em caixas térmicas apropriadas ao transporte aéreo.

A aviação brasileira, que já se comprometeu com o transporte de órgãos de forma gratuita através de acordos de cooperação técnica, está fazendo a sua parte. E nós, cidadãos, estamos fazendo a nossa?

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Os números impressionam e evidenciam que o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) depende de uma engrenagem que vai além dos hospitais e profissionais da saúde. Aeroportos, companhias aéreas e profissionais de controle de tráfego aéreo também são peças essenciais nessa rede. Esse esforço coletivo, no entanto, só pode ter sucesso se mais pessoas se conscientizarem sobre a importância de se declarar doador de órgãos.

O Brasil, apesar de possuir o maior sistema público de transplantes do mundo, ainda enfrenta uma fila de espera enorme, de 65 mil pessoas, de acordo com informações do Ministério da Saúde. Somente no Paraná, em agosto de 2024, 3.992 pacientes aguardavam um órgão que poderia lhes salvar a vida.

Há uma logística cuidadosamente orquestrada a favor da vida nos aeroportos brasileiros. Quando um órgão vital precisa ser transportado, o tempo é um fator decisivo. O código “TROV” (Transporte Aéreo de Órgãos Vitais) aciona uma corrida para que o órgão chegue ao receptor dentro de uma janela de tempo extremamente curta. Cada minuto conta, e há uma rede de coordenação entre os aeródromos, as companhias aéreas e as centrais de transplantes para garantir que tudo funcione conforme o previsto. É uma operação complexa e altamente organizada, mas que depende, acima de tudo, da generosidade dos doadores.

É o caso, por exemplo, do Aeroporto Internacional Afonso Pena, em São José dos Pinhais (PR), administrado pela CCR Aeroportos. Até agosto deste ano, o aeroporto ajudou a transportar 298 órgãos em curtas, médias e longas distâncias. Em janeiro, uma caixa térmica contendo medula óssea viajou de Berlim, passou por Paris e Guarulhos até chegar ao aeroporto de Curitiba, onde uma pessoa aguardava ansiosamente pelo órgão. Uma jornada transcontinental que não seria possível sem a colaboração dos profissionais do transporte aéreo.

Embora o processo de doação de órgãos seja sigiloso, de forma que não se conheça a identidade dos doadores e receptores, por vezes o encontro é inevitável. Recentemente, em uma madrugada no Aeroporto de Bacacheri, em Curitiba (PR), equipes da administração aeroportuária e da torre de controle foram acionadas para processar a chegada de duas aeronaves de origens distintas, mas que pousaram com cinco minutos de diferença entre si. Em uma delas, o receptor; na outra, o coração a ser transplantado. Mais do que nunca, a vida, literalmente, teve pressa.

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Recentemente, uma iniciativa do Instituto Brasileiro de Aviação, por meio do programa Transplantar, foi ao encontro a fomentar ainda mais a solidariedade entre os empresários do setor. O doador solidário do voo emitirá um termo de utilização temporária de seu equipamento aeronáutico que em tese estaria ocioso (aeroporto, aeronave, horas de voo, combustível, taxas aeroportuárias etc.) para salvar vidas. Ações como essa tem o potencial de criar uma disponibilidade de transporte aéreo em locais onde hoje não existam voos regulares, bem como de contribuir para a redução da taxa de descarte de órgão vitais por meio de uma melhor gestão do tempo entre a retirada do órgão do doador e seu implante no receptor.

Apesar da eficiência desse sistema, há um desafio que persiste: a conscientização. O Brasil possui uma estrutura robusta para a captação e transporte de órgãos, mas ainda há um déficit de doadores. Muitas pessoas não comunicam suas famílias sobre o desejo de doar seus órgãos, o que dificulta a decisão em momentos de luto. Este é o ponto mais frágil da cadeia: a necessidade de uma decisão generosa, mas muitas vezes difícil, no momento mais delicado da vida de uma família.

Ao abordar esse tema, é importante questionar: o que pode ser feito para aumentar o número de doadores? Como aumentar o engajamento da sociedade civil, das empresas e dos governos? A aviação brasileira, que já se comprometeu com o transporte de órgãos de forma gratuita através de acordos de cooperação técnica, está fazendo a sua parte. E nós, cidadãos, estamos fazendo a nossa?

Em um país com uma das maiores filas de espera por transplantes do mundo, a declaração de doação de órgãos é um dos maiores atos de generosidade que uma pessoa pode oferecer. É uma oportunidade de salvar vidas — muitas vidas. E para que isso seja possível, cada elo da cadeia precisa funcionar perfeitamente. O transporte aéreo é um deles, garantindo que a esperança chegue a tempo. Mas o primeiro passo está em cada um de nós: informar nossas famílias sobre o desejo de doar e fazer parte dessa engrenagem que salva vidas.

Wilson Rocha Gomes, mestre em Administração, é gerente do Aeroporto do Bacacheri, em Curitiba (PR).

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]