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“O Brasil está dividido”. É um lugar comum, um clichê. Luís Inácio Lula da Silva obteve 57.259.504 votos, Jair Messias Bolsonaro 51.072.345, em um universo de 156.454.011 eleitores aptos a votar. Do total de votos possíveis, portanto, Lula teve 36,60% e Bolsonaro 32,64%. Isso indica que ambos foram escolhidos por algo em torno de um terço do eleitorado brasileiro. Esse é o fato, ainda que se possa problematizar a questão do enorme quantitativo de abstenções – pessoas que não compareceram à sua seção eleitoral para votar, um total de 32.770.982 no primeiro turno dessas eleições). O país não está dividido, está repartido em vários cacos. Uma questão de interesse aqui é quanto o eleitorado se move pelo chamado “voto útil”.
Vejamos o caso das eleições para o governo do estado de São Paulo. O candidato Fernando Haddad do Partido dos Trabalhadores (PT), que figurava na liderança pelas pesquisas de intenção de voto, teve 8.337.139 (35,70% do total dos válidos), ficando em segundo lugar. O primeiro colocado foi Tarcísio Freitas (Republicanos) com 9.881.995 votos (42,32%). Interessa refletir sobre o fenômeno, especialmente quando lembramos que ao disputar a reeleição para prefeito na capital do estado em 2016, o petista foi derrotado ainda no primeiro turno por ampla diferença. Adicione-se a esse histórico a eleição de Bolsonaro à Presidência da República em 2018 contra o mesmo Haddad, em grande medida decorrente do voto útil contra a visão socialista de mundo do PT e do candidato desse partido.
Nos detenhamos um pouco na explicação, senão do fenômeno em si, da narrativa que levou a tal voto útil. A linha argumentativa bolsonarista era a de que o Partido dos Trabalhadores e seu candidato à Presidência teriam interesse em implantar o comunismo (ou socialismo – não vamos aqui entrar em pormenores das diferenças entre as duas ideologias, utilizando-as como sinônimos no presente texto) no Brasil, “transformar o Brasil numa Venezuela”. Evidências estariam dadas no discurso dos caciques do PT e em seus apoios a ditaduras ditas populares. Os defensores de Haddad e de seu partido sempre ridicularizaram essa narrativa.
Contudo, ao se estudar “Em defesa do socialismo: por ocasião dos 150 anos do manifesto”, livro de 67 páginas de autoria de Haddad, publicado em 1998, entende-se que visualizar que o PT e seus líderes sonham (cônscios disso ou não) com um Brasil comunista não é algo tão ridículo. Na obra, como está explícito em seu título, o autor defende o socialismo como a solução para os males econômicos e sociais da humanidade. Afirma que o principal defeito do movimento socialista foi não perceber o quão adaptável é o capitalismo. A união soviética teria tido grande problema em decorrência da exacerbação do despotismo Oriental, ainda que em nome da liberdade (ora, veja-se que interessante oxímoro).
O capitalismo precisa ser superado e o socialismo implantado, mas não de forma autoritária e sim com a utilização da engrenagem instalada, das instituições existentes. Por isso, Haddad tem “Propostas de políticas socializantes” (segundo capítulo do livro), ou seja, uma refletida estratégia de implantação do socialismo (ainda que pretensamente democrático), a qual vai além do Executivo, abarca Legislativo, Judiciário e as organizações da sociedade civil. Afirmativa maior da obra: “é fundamental que se realize a socialização da propriedade privada, mantendo-se o mercado”. Isso nos levaria a um mundo cor de rosa em que as organizações produtivas seriam cooperativas em gestão compartilhada entre os próprios cooperados-trabalhadores e o Estado e que cooperariam entre si, inclusive internacionalmente.
Não é de espantar que o candidato petista tenha alcançado o segundo lugar na disputa ao governo do maior estado brasileiro em termos econômicos. Ele tem uma detalhada “produção científica”, a partir da qual gera suas ideias políticas, utilizando-as para encantar o doente em estágio avançado, oferecendo uma deliciosa e inofensiva balinha de alcaçuz. Foi assim que ele liderou por quatro anos a maior metrópole das Américas e quinta do mundo e dela foi rechaçado. O voto útil de 2018 justifica-se com facilidade. Mas o eleitorado paulista, em parte desconhece a fórmula da balinha de alcaçuz, em parte já esqueceu o que foi a prefeitura petista de 2013 a 2016 e em parte vota útil contra o candidato do genocida. Vota-se contra, não se vota a favor. Boa parte opta pelo “não voto” e assim segue a sociedade brasileira despedaçada.
Marcos Pena Jr., economista, filósofo e escritor, é pesquisador do Núcleo de Filosofia Política do LABÔ da PUC-SP. É autor de “Do riso às lágrimas: poemas contra ressentimentos” (2021) e “Visagens nossas de cada dia: uma história da Independência” (2022).