| Foto: Geoffrey Moffett/Unsplash
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O filme “Barbie” suscitou um fenômeno social muito grave, mas que está passando despercebido pelo olhar da maior parte do público e dos agentes culturais. A diversidade de olhares e opiniões sobre o filme — e o respectivo debate acirrado dos opinadores, uns contra os outros — revela a decadência do entendimento geral a respeito do papel da arte e da cultura. Alguns viram no filme uma ode ao soberano papel da mulher, que impera em uma sociedade repleta de homens fúteis. Outros perceberam em “Barbie” uma propaganda feminista que procura destruir os valores tradicionais da família. Há, ainda, alguns que entenderam que o longa-metragem não faz defesas ideológicas, mas que, no fim das contas, expressa a complexidade da vida humana e a identificação com a fragilidade do papel feminino. Eu, pessoalmente, me encontro mais próximo deste último grupo, porém não acho que a discussão mais importante seja relativa ao sentido do filme em si. Temos diante de nós um fenômeno mais grave: a ignorância a respeito de como devemos ver uma obra de arte.

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Em uma sociedade versada a respeito da posição que uma obra de arte ocupa, não deveria ser nenhuma surpresa que as discussões sejam diversas e, muitas vezes, antagônicas. Não há novidade nenhuma em que ela motive percepções diferentes e opostas. Porém, distanciamo-nos tanto de uma cultura saudável que aquilo que antes era normal e compreensível hoje é entendido como escândalo. Basta que se lance uma nova obra de arte — seja filme, exposição, fotografia, peça de teatro — que o público irá automaticamente se dividir em grupos antagônicos que não dialogam entre si, cada um xingando o outro e inevitavelmente procurando justificativas políticas para suas opiniões. Vivemos em um mundo pautado pela constante divisão ideológica, onde todos estão predispostos a politizar as obras, até mesmo antes de vê-las.

Algumas questões históricas agravam essa situação. É fato que a classe artística brasileira se entupiu tanto de cosmovisão marxista que ser artista se tornou praticamente sinônimo de esquerdista. Isso faz com que as obras de arte adquiram um forte acento de símbolos e metáforas provenientes do esquerdismo. Por outro lado, uma nova direita começou a surgir nas últimas décadas, acusando esse processo e procurando — muitas vezes com razão — a influência ideológica nas obras de arte. Um lado politiza a produção das obras, e o outro lado politiza sua interpretação. Ambos estão falhando miseravelmente. O artista esquerdista falha ao acreditar que pode construir uma obra independente e que seja capaz de moldar inteiramente a imaginação do público. O direitista falha porque acredita que o esquerdista é capaz de fazer o que pretende.

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Basta que se lance uma nova obra de arte — seja filme, exposição, fotografia, peça de teatro — que o público irá automaticamente se dividir em grupos antagônicos que não dialogam entre si

Ambos os lados erram porque ignoram a ação mais determinante no impacto de uma obra de arte: o olhar do espectador. A verdade é que ela é do tamanho do olhar interior do seu espectador. No fim, quem decide o tamanho da influência de uma obra é quem a está consumindo. Uma obra de arte é muito mais um diagnóstico do que uma profecia. Uma obra de arte — a maioria delas — é a manifestação dos dramas e tensões que habitam a alma humana. Essas obras, mesmo aquelas que pretendem ser propagandas, podem ser transfiguradas pelo olhar do espectador atento. Ou, como diria Louis Lavelle, “não devemos perguntar que sentido a obra tem, mas que sentido ela dá à realidade que representa e que é sempre transfigurada por ela”. Uma obra de arte não tem nenhum impacto se não for contemplada com atenção. A arte depende do contato íntimo com seu público para ter qualquer relevância. É só quando existem olhares atentos que uma obra realmente passa a existir. A arte é de uma fragilidade tamanha que depende de quem não é artista para firmar sua existência.

Aqui saímos do campo ideológico e entramos no campo da experiência da percepção artística. O que vemos, hoje em dia, é justamente uma crise na capacidade de perceber as obras. Existem duas posições opostas que se instauram quando falamos dessa percepção. A primeira acredita que a obra esconde uma linguagem capaz de manipular a audiência. Nessa percepção, há a convicção de que as obras moldam o gosto da audiência e exercem um domínio sobre a inteligência da plateia. Essas ideias habitam mais os setores conservadores, onde se propaga a necessidade de reeducar o imaginário e se obter uma imaginação mais pura e refinada. A segunda posição se opõe a isso, afirmando que o gosto humano é algo totalmente independente. Cada um tem seu gosto, e não é possível moldar a percepção estética de ninguém, apenas aceitar a interpretação subjetiva de cada um. Essa é uma defesa muito usada para justificar obras de gosto duvidoso e que vão contra o senso comum. Universitários, críticos de arte e a high society costumam estar nesse grupo.

Um pouco de clareza interior nos mostraria que, além de ambas as tendências terem seu fundo de razão, elas são manifestações de um problema mais antigo e mais profundo. A crença de que o mundo — e, portanto, as obras de arte — é regido por leis, onde podemos manipular para obter um resultado sobre as pessoas, nada mais é do que a velha percepção empirista que procura reduzir o mundo a um conjunto de regras e fórmulas. Nesse sentido, não seria correto falar de educação do imaginário, mas de fórmula do imaginário. Se é possível manipular a audiência com as obras, seria possível também "desmanipular". Ou, para usar um conceito do marketing digital muito empregado nos meios que essas ideias alquímicas habitam, seria possível “destravar” o imaginário.  Já a crença de que não é possível captar a verdade das obras — e, portanto, a verdade do mundo — é, por sua vez, a manifestação daquele subjetivismo de Kant que acredita que o intelecto não é capaz de sondar a realidade e captar o ser das coisas.

Erwin Panofsky explica, em seu livro Arquitetura gótica e escolástica, que tanto o empirismo como o  subjetivismo, apesar de opostos, têm raízes comuns. Diz o historiador que “tanto a mística (individualismo) como o nominalismo (empirismo) não passam, em certo sentido, dos dois lados da mesma moeda. Ambos remetem o indivíduo à percepção individual de seus sentidos e de suas experiências psíquicas”. Ou seja, ambas ideias levam o indivíduo a ficar preso à dimensão dos seus sentidos. O empirista prende o indivíduo em seus sentidos através de uma preocupação exacerbada a respeito de sua educação do imaginário, enquanto o subjetivista faz o mesmo, porém negando que existe algo para além do gosto.

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A resolução dessa tensão se realiza através da educação intelectual. Só uma verdadeira educação pode restaurar nossa percepção artística. A palavra educação vem do termo em latim ex ducere, que pode ser traduzido como uma condução para fora. Ou seja, uma verdadeira educação do imaginário é aquela que nos empurra para fora de concepções ideológicas e, também, para fora do mundo dos sentidos — direcionando-nos para uma percepção mais abrangente e profunda. Novamente Louis Lavelle explica que “o espírito mais profundo é aquele que vê no mundo mais coisas belas”.

O simbolismo do leão pode nos remeter tanto à realeza de Deus (Deus como o Leão da Tribo de Judá) como ao demônio, que é tratado nas Escrituras como um leão feroz que quer devorar as almas

Nesse processo educacional, é essencial compreender qual papel uma obra de arte ocupa na sociedade. A primeira coisa que devemos saber sobre uma obra de arte é que ela é composta de símbolos. Esses símbolos compõem o que chamamos de linguagem poética. A linguagem poética é aquela que expõe um conjunto de símbolos articulados entre si dentro de uma linguagem corrente (pintura, escultura, cinema, literatura, etc). A linguagem primordial das artes é a poesia. Ou seja, mesmo em uma obra ruim, captamos nela signos e símbolos que remetem a realidades maiores. Um símbolo é uma matriz de significados. Dentro do símbolo habitam diferentes sentidos — que, inclusive, podem ser opostos. Por exemplo, o simbolismo do leão pode nos remeter tanto à realeza de Deus (Deus como o Leão da Tribo de Judá) como ao demônio, que é tratado nas Escrituras como um leão feroz que quer devorar as almas. O simbolismo do leão pode ser usado tanto para representar a Deus como ao demônio. É assim que se dá nos elementos que compõem uma obra de arte. Frequentemente, os símbolos presentes em uma obra podem ter significados opostos. É por isso que vemos interpretações tão distintas com relação às obras, como é o caso do filme da Barbie. Mas somente uma obra rica em símbolos é capaz de gerar esse tipo de reação.

A percepção simbólica na arte é o suficiente para se resolver aquela tensão entre subjetivismo e empirismo. O sentido das obras não está escondido em uma fórmula secreta capaz de manipular o espectador. Seu sentido também não se encontra na percepção meramente subjetiva. O sentido da obra se encontra exatamente no ponto médio entre a obra e o espectador. A obra emite significados através de seus símbolos, enquanto esses símbolos são captados pelo espectador que os interpreta na medida da sua própria capacidade de penetração na obra. O sentido da obra não está nem encerrado nela mesma e nem encerrado no indivíduo que a vê. O sentido da obra está na relação entre obra e público. Daí a riqueza de interpretações e sentidos que vemos brotar de uma obra. Nesse sentido, entendemos o que Fernando Pessoa quis dizer quando bravejou em suas anotações sobre estética: "o essencial da arte é exprimir, o que se exprime não interessa".

A moldura de um quadro ou a tela de cinema nos colocam diante dessa atitude meditativa. Em outro trecho de seu ensaio “Arte como Revelação”, Louis Lavelle diz o seguinte: “é meditando sobre a arte como solução, e não como problema, que discernimos sua verdadeira natureza”. O apontamento de Lavelle nos direciona para a correta disposição frente a uma obra de arte. Devemos meditar sobre o que a obra está propondo para nós. A correta disposição é essa: devemos nos abrir ao que ela está propondo e à riqueza simbólica nela contida, sabendo que o sentido de sua mensagem dependerá de nós mesmos. Uma imaginação educada é aquela que sabe encontrar a Verdade — a beleza — nas coisas.

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Quando os nazistas criaram a Galeria dos Degenerados e lá colocaram todas as artes abstratas de sua época como forma de as denegrir frente ao público, eles provaram justamente o contrário. Aquelas obras apenas revelaram a falta de compreensão da realidade que a ideologia nazista impôs àquelas mentes. Eles olhavam para as obras e viam nelas a degeneração que na verdade estava dentro deles. Essa é a grande vocação da arte: ser revelação. Em primeiro lugar, revelação daquilo que passa dentro de nós. Isso porque a obra nos obriga a meditar em seus símbolos. E, portanto, nos obrigando a investigar interiormente se vemos no leão o Deus ou o diabo.

Matheus Bazzo é fundador da Lumine e da Minha Biblioteca Católica.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]