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O bebê de Olga Benário e a ADPF do aborto

Imagem ilustrativa. (Foto: Freepik)

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A ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha honrou o Supremo Tribunal Federal (STF) ao declarar que a corte deveria pedir perdão por ter expulsado Olga Benário do país em 1936, permitindo que o governo brasileiro a entregasse, indefesa, nas mãos da Alemanha nazista. Olga era uma judia alemã – e já estava, então, com sete meses de gravidez. “Ainda que seja ineficaz do pondo de vista humano ou jurídico, o Supremo precisa pedir perdão”, clamou a ministra, advertindo, ainda, que “[...] é bom que se lembre sempre disso”.

Ora, uma das questões enfrentadas pelo STF à época dizia respeito à possibilidade de aplicação ao nascituro da garantia que impede a extradição de cidadão brasileiro. O nascituro, em questão, era o filho que Olga Benário gestava, fruto de sua relação com o líder político brasileiro Luís Carlos Prestes. Várias obras retratam o drama, com destaque para o trabalho pungente do biógrafo Fernando Morais. Muito embora defendida pelo advogado Heitor Lima, Olga Benário acabou sendo expulsa arbitrariamente do Brasil, sem que houvesse a comprovação de qualquer crime cometido por ela, o que foi consignado pelo ministro Bento de Faria, relator do caso perante o STF: “O relator leu a longa petição e as informações prestadas pelo ministro da Justiça, que declarou não haver a polícia apurado qualquer crime praticado por Maria Prestes, mas que, sendo ela um elemento nocivo e perigoso à ordem pública, estava sendo ultimado o seu processo de expulsão, baseado na lei de Segurança Nacional”, publicou o jornal carioca Correio da Manhã em sua edição de 18 de junho de 1936.

A criança no ventre de Olga Benário poderia ser considerada de nacionalidade brasileira antes do seu nascimento com vida, de modo a ser merecedora de proteção estatal.

Ora, entre os direitos e garantias individuais assegurados pela Constituição de 1934, estava previsto no art. 113, n. 31: “Não será concedida a Estado estrangeiro extradição por crime político ou de opinião, nem, em caso algum, de brasileiro”. Um dos pontos controvertidos era, precisamente, se a criança no ventre de Olga Benário poderia ser considerada de nacionalidade brasileira antes do seu nascimento com vida, de modo a ser merecedora de proteção estatal a impedir sua expulsão. Durante a sessão de julgamento, o impetrante do habeas corpus mostrou-se estupefato perante a tribuna do STF, ao tomar conhecimento de que a corte pretendia entregar ao nazismo uma judia que reconhecia inocente, e, embora considerasse que a lei do estado de guerra autorizava a expulsão de estrangeiros discricionariamente, tal lei não teria suspendido o preceito constitucional que proíbe o banimento de brasileiro. Heitor Lima, invocando a autoridade de Clóvis Beviláqua e do direito romano, defendeu que a expulsão da gestante “[...] concretizava o banimento de um brasileiro, filho de um brasileiro”.

A essa altura, não podemos nos furtar à polêmica que se estabeleceu em torno da posição de Clóvis Beviláqua quanto à expulsão de Olga Benário. Se, por um lado, o escritor Fernando Morais o apontou como alguém favorável à medida, por outro, o advogado Cássio Schubsky publicou livro laudatório ao jurista responsável pela redação do Código Civil de 1916, esclarecendo que Beviláqua já havia se aposentado do Itamaraty em 1936, quando Olga Benário foi expulsa do país, e acrescentando que as supostas declarações dadas pelo jurista cearense a jornais da época não foram confirmadas documentalmente: “A que jornais teriam sido dadas as tais declarações citadas por Fernando Morais, não se sabe, o jornalista, em seu livro, não esclarece”.

A Revista Época, inclusive, ouviu Fernando Morais sobre os questionamentos de Cássio Schubsky, declarando não ter como confirmar na época as fontes documentais que amparavam os fatos narrados no livro. Contudo, localizamos matérias publicadas no ano de 1936 no Diário de Pernambuco e no Correio de São Paulo (que reproduziu matéria anteriormente publicada em O Globo): “Sobre o assumpto, ‘O Globo’ procurou ouvir o grande jurisconsulto Clovis Bevilaqua, que declarou: ‘A questão já foi estudada em todos os seus aspectos, em face do direito civil. É porém diverso o caso ora em debate. Estamos agora no terreno do direito internacional, com um caracter punitivo. Essa punição, no entanto, visando a expulsanda, vae attingir o nascituro’. A essa altura o jornalista indaga se, em nossas leis, existe algum dispositivo regulando o assumpto. ‘Não existe’ – respondeu. E acrescentou: ‘Além disto, estamos em um período de guerra, e a expulsão de que se cogita envolve o ponto de vista de interesse público, que está acima de todos os demais interesses’. ‘Conclue, então, o professor, pela impossibilidade de ser sustada a expulsão?’ ‘A não ser por uma questão de humanidade…’ - respondeu. E, após uma pausa, disse ainda: ‘No tempo em que havia a pena de morte, não se executava a sentença, quando a paciente estava grávida. Aguardava-se o nascimento da criança. Era também uma questão de humanidade’”.

Por ocasião do julgamento da expulsão de Olga Benário no STF, a maioria da corte não chegou a apreciar o mérito do habeas corpus, ao argumento de que a garantia do habeas corpus estava suspensa em razão da Lei do Estado de Guerra vigente à época, nos termos do voto do ministro relator, Bento de Faria. Todavia, o ministro Carlos Maximilliano, autor de manual de Hermenêutica Jurídica reeditado até hoje, chegou a discutir o mérito em seu voto, alegando que não restou provada a paternidade do nascituro, nem seu lugar de concepção.

Também aludiu “a conducta moral de Maria Prestes, affirmando que na Alemanha delinquira e tivera outro amante. Abordou depois o aspecto jurídico do amparo invocado pelo impetrante para o nascituro, entendendo que nenhuma lei brasileira impedia a expulsão de uma gestante estrangeira”. Por fim, reconheceu o direito de o governo promover a expulsão de estrangeiro que considerar nocivo, denegando a ordem de habeas corpus. Os ministros Ataulpho Paiva, Octavio Kelly e Laudo de Camargo limitaram-se a seguir o voto do relator.

O ministro Costa Manso, por sua vez, também analisou o argumento relacionado à defesa do nascituro: “não encontrando apoio na lei para justificar oposição à expulsão da gestante, porque o Código Civil só assegura a personalidade jurídica depois do nascimento”. O ministro Carvalho Mourão igualmente adentrou ao mérito do habeas corpus, havendo afirmado que os direitos “dos nascituros são meras ficções definidas pelo Código em casos especiaes, para garantias patrimoniaes, mormente para cumprimento de cláusulas testamentárias, não havendo lei que assegure a ficção do direito á nacionalidade”.

Acrescentou também que “sempre fôra e será contrário ao banimento de um brasileiro, mas não depara em qualquer das leis applicáveis à espécie, um preceito que defina no Brasil, a nacionalidade de um nascituro, como sóe acontecer em outros paízes”.  Assim, também denegou a ordem. Por fim, também acompanharam o voto do relator no sentido de denegar a ordem os ministros Eduardo Espínola, Plínio Casado e Hermenegildo de Barros. E, assim, a ordem foi denegada por unanimidade pelo STF.  No tocante aos votos dos ministros que enfrentaram o mérito da questão (Carlos Maximiliano, Costa Manso e Carvalho Mourão), pode-se resumir o argumento na ausência de previsão expressa em lei de direitos ao nascituro que impeçam a expulsão da gestante, ou ainda a inexistência de reconhecimento expresso do direito do nascituro à nacionalidade brasileira.

É exatamente esta a linha de argumentação adotada pela ministra Rosa Weber no julgamento da ADPF 442, de modo a concluir pela descriminalização do aborto: “Da análise das propriedades da regra constitucional, ao dispor sobre o direito à vida, constata-se que o primeiro elemento importante para sua adequada interpretação diz respeito à titularidade dos direitos fundamentais. De forma expressa, sobredita regra prescreve que são assegurados direitos aos brasileiros e aos estrangeiros residentes. Indaga-se: quem são os brasileiros referidos no texto? A Constituição define como brasileiros os nascidos no Brasil, ainda que de pais estrangeiros, […], ou os nascidos no estrangeiro de pai ou mãe brasileiro, […]. Aos nascidos, então, de acordo com a leitura textual e sistemática da Constituição, é atribuída a titularidade dos direitos fundamentais”.  As razões apresentadas pela ministra Rosa Weber terminam por reafirmar as razões que levaram os ministros do STF a, no mérito, denegarem a ordem de habeas corpus em favor de Olga Benário em 1936. Em vez de um mea-culpa e da formulação de um pedido de perdão à família de Olga Benário, a decisão da ministra Rosa Weber leva à equivocada conclusão de que o STF acertou ao decidir pela expulsão de Olga Benário.

Para além dessa questão, consideramos também que o voto da ministra Rosa Weber baseia-se em premissa que contraria frontalmente o que já foi decidido pelo STF em sede de Repercussão Geral no julgamento do Tema 373 (RE 608.898-DF). Neste julgamento, o ministro Celso de Mello consignou que: “o Supremo Tribunal Federal, em julgamento plenário realizado há mais de 70 anos, em 1947, […], entendeu dispensável, até mesmo para o efeito de impedir a expulsão de estrangeiro, que já tivesse ocorrido o próprio nascimento de seu filho, bastando, para tanto, o mero fato da concepção, de tal modo que a só existência de um nascituro revelar-se-ia suficiente para suspender a execução do ato expulsório, exceto se não se registrasse o superveniente nascimento com vida”. Para o ministro Marco Aurélio, relator do Tema 373, o preceito da Lei n. 6.815/1980, ao estabelecer tratamento discriminatório entre os filhos havidos antes e após o fato justificador da expulsão viola o princípio constitucional da isonomia: “Se o interesse da criança deve ser priorizado, é de menor importância o momento da adoção ou concepção”. Além de violar o princípio constitucional da isonomia, dar tratamento distinto ao filho nascituro em relação aos filhos já nascidos no que toca à proteção do direito à vida viola diretamente o preceito contido no § 6º do art. 227 da Constituição, que assegura a igualdade entre os filhos e veda qualquer tipo de discriminação.

Portanto, ao adotarmos o entendimento da ministra Rosa Weber na ADPF 442, estaríamos reafirmando as razões da deletéria decisão do STF que, em 1936, resultou na expulsão de Olga Benário para morrer nas masmorras nazistas. Por fim, é de se registrar as tocantes palavras de Hannah Arendt, filósofa de origem judia, em um tempo tão conturbado, e especialmente quando tantas vidas de pessoas inocentes estão sendo ceifadas em Israel: “O milagre que salva o mundo, o domínio dos assuntos humanos, de sua ruína normal, ‘natural’ é, em última análise, o fato da natalidade, no qual a faculdade da ação se radica ontologicamente. Em outras palavras, é o nascimento de novos seres humanos e o novo começo, a ação de que são capazes em virtude de terem nascido”.

Venceslau Tavares Costa Filho é doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco (UPE) e da UniFafire, membro da Comissão Especial de Responsabilidade Civil do Conselho Federal da OAB e Advogado.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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