Lembro-me bem de quando o Jornal Nacional, no dia 19 de abril de 2005, falou sobre o conclave que elegeu o então cardeal Joseph Ratzinger à Cátedra de Pedro. Na ocasião, os jornalistas referiam-se a ele como “o papa teólogo”, talvez com medo de insinuarem que Ratzinger, no fundo, era um grande intelectual.
Bento XVI foi mais do que o “papa teólogo”. Detentor de uma profunda vida intelectual, falava sete idiomas e era um exímio pianista. Foi membro associado da Académie des Sciences Morales et Politiques do Institut de France. Recebeu inúmeros doutorados Honoris causa e viveu com profundidade os desafios de seu tempo e combateu heresias contemporâneas como a Teologia da Libertação.
Ainda em 1984, enquanto era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, antigo Tribunal da Santa Inquisição, advertiu, em uma instrução escrita por ele e aprovada pelo então papa João Paulo II, contra os “perigos de desvio, prejudiciais à fé e à vida cristã, inerentes a certas formas da teologia da libertação que usam, de maneira insuficientemente crítica, conceitos assumidos de diversas correntes do pensamento marxista”.
Em 2004, quando ainda era cardeal, travou em Munique, na Alemanha, o famoso debate com pensador da Escola de Frankfurt, Jüngen Habermas, sobre temas como pressupostos do Direito, formas de poder, Estado democrático, fé e razão, posteriormente transformados no célebre livro Dialética da Secularização.
Neste encontro, o futuro papa Bento XVI colocou no topo de seu texto o título O que mantêm o mundo unido, refletindo contra a razão prática do pensamento secular pós-metafísico de Habermas, e tratando da realidade do ser humano como criatura e filho de Deus, este, pois, anterior então à comunidade em que vive e se aperfeiçoa. Um pensamento de matriz aristotélico-tomista em sua raiz.
Antes, porém, quando alguns ainda criticavam a encíclica Fides et Ratio, de 1998, de São João Paulo II, a qual tratava de Santo Tomás de Aquino e a conciliação entre fé e a razão, “as duas asas as quais o homem eleva-se à contemplação da verdade”, Ratzinger se dispôs a debater sobre a verdade da religião cristã contra os marxistas ateus. Tanto era verdade que na revista italiana de esquerda MicroMega, na edição de 2000, Ratzinger foi citado como a “quintessência da ortodoxia católica”.
Na época, o cardeal alemão debateu com o filósofo ateu Paolo Flores d`Arcais sobre as fronteiras das crenças no Teatro Quirino de Roma, transmitido para quase duas mil pessoas que não conseguiram adentrar o recinto para ver o debate. Na ocasião, Ratzinger disse que “Se examinarmos a história da Igreja, nela se manifesta, de forma permanente, a fraqueza humana, e o paradoxo da Igreja é que, apesar de todas estas carências, o Evangelho vive e continua presente”.
Bento XVI morreu no dia 31 de dezembro, dia da Memória de São Silvestre, papa, cuja luta deu-se contra heresias de seu tempo contra o donatismo e o arianismo que causavam graves danos ao povo cristão. Bento XVI lutou também, mesmo escondido em seus últimos anos, em oração, contra as heresias de seu tempo. Mesmo fraco de saúde, apesar de toda a carência física que o debilitara desde 2013, seu legado permanecerá vivo e presente.
Lucas Daniel Tomáz de Aquino é tradutor e professor de Filosofia.
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