Teve início, no Senado, a CPI que investigará as responsabilidades do governo federal, bem como de estados e municípios, no que tange à crise pandêmica que ora vivenciamos. Embora outros entes federativos possam ser trazidos à tona, não nos enganemos, pois a Comissão Parlamentar de Inquérito mira, sim, o bolsonarismo no bojo do governo.
Há, neste sentido, um bolsonarismo militante – nas redes e nas ruas – e o bolsonarismo governamental, daqueles que, ideologicamente e nos valores, ocupam funções na estrutura estatal e imprimem, em suas falas e ações, facetas do presidencialismo de confrontação. Nos primeiros meses do mandato do presidente Jair Bolsonaro, após sucessivas declarações, principalmente, do próprio presidente, asseverei, alhures, que as vontades e suas realizações trazem consequências. A situação em tela: quase 400 mil mortos e uma CPI em funcionamento são, portanto, os resultados de uma escolha deliberada de Bolsonaro e seus ministros de alicerçar discursos e condutas sobre os pilares do negacionismo, do desprezo à ciência, das teorias da conspiração e das fake news.
Se muitos políticos, metaforicamente, podem atirar para todos os lados, Renan Calheiros é um atirador de elite, um sniper.
A CPI, como se sabe, é instrumento político das minorias parlamentares e que objetivam desnudar determinadas responsabilidades, podendo estas serem, também, políticas, jurídicas e até criminais. No conjunto dos senadores que compõem a comissão, o governo se encontra em minoria e, por isso, a situação já é, na largada, difícil. Manobras jurídicas tentaram impedir que Renan Calheiros fosse indicado como o relator, cuja posição é de suma importância dado ao fato de produzir o relatório final. No palco da CPI, os atores serão: o presidente Omar Aziz (PSD-AM), o vice-presidente Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e, na sequência, Renan Calheiros (MDB-AL), indicado por Aziz como relator. Há, ainda, os senadores Humberto Costa (PT-PE), Otto Alencar (PSD-BA), Tasso Jereissati (PSDB-CE), Marcos Rogério (DEM-RO), Eduardo Braga (MDB-AM), Eduardo Girão (Podemos-CE), Ciro Nogueira (PP-PI) e Jorginho Mello (PL-SC).
Renan Calheiros é, na política, daqueles adversários que ninguém deseja. Um amigo e interlocutor frequente nos assuntos atinentes à política disse-me, recentemente, que “Renan é dos poucos que sabem fazer o mal com tanto carinho”. Na instalação da CPI, a fala de Calheiros foi dura. “Não foi o acaso ou o flagelo divino que nos trouxe a este quadro. Há responsáveis, há culpados, por ação, omissão, desídia ou incompetência e eles serão responsabilizados”, disse. E, ainda: “Os crimes contra a humanidade não prescrevem jamais [...]. O país tem o direito de saber quem contribuiu para as milhares de mortes. E eles devem ser punidos imediatamente e emblematicamente”. Se muitos políticos, metaforicamente, podem atirar para todos os lados, Renan é um atirador de elite, um sniper.
Senadores aliados do governo tentaram, no STF, barrar Renan na relatoria da CPI. E isto indica que o senador alagoano é deveras temido pelo Planalto. Muito se comentou acerca de um relatório produzido pelo governo que, para antecipar sua defesa, destacou ações e omissões que nem mesmo se tinha aventado na CPI, e o pior foi este relatório ter vazado. Mas, para quem acompanha a cena política, lê os jornais e revistas e, ainda que panoramicamente, frequente as redes sociais, Bolsonaro, seus ministros, seus filhos e aliados políticos já produziram material fartamente registrado sobre praticamente todas as falas, entrevistas, lives e ações, desde março de 2020 até agora.
O ponto alto em toda a CPI é, sem dúvida, tirante o relatório final, as sessões com depoimentos aos parlamentares. E, neste caso, os parlamentares, dotados de retórica política, submetem os depoentes a um ambiente de tensão, enorme exposição e saraivada de perguntas e argumentações que podem produzir peças explosivas. Deem um microfone ao ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, médico e político; e, depois, ao ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Submetam os dois à pressão. Já conseguem imaginar o resultado? Coloquem cientistas e pesquisadores como, por exemplo, Natalia Pasternak, Atila Iamarino, Margareth Dalcolmo e Miguel Nicolelis de um lado e, do outro, Ernesto Araújo, Paulo Guedes, Carla Zambelli e Flavio Bolsonaro. É por isso que muito se afirma que todos sabem como começa uma CPI, mas nunca se sabe como ela termina.
O presidente Bolsonaro e o seu governo serão desgastados ao longo deste processo de investigação. O resultado, por enquanto, será difícil de prever; todavia, numa perspectiva de construção de cenários futuros, nenhum deles é favorável para o bolsonarismo. Acuado, Bolsonaro continua a atacar, ameaçar e menosprezar a CPI, chamando-a de “carnaval fora de época”. Felizmente para o governo, não é carnaval e, por conta disso, não há o povo nas ruas. Dialeticamente, a pandemia que fragiliza o governo também o protege de protestos massivos.
Rodrigo Augusto Prando, graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia, é professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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