Bolsonaro não cansa de se trair. Ele não sabe, ou pelo menos finge não saber, que vocábulos como “ideologia” (que na falaciosa versão de uma de suas muitas bases obscurantistas – no caso em tela, o fundamentalismo religioso –, aparece na forma de “ideologia de gênero”), bem como “desconstrução” e seus derivados, foram colocados no mundo principalmente pelas disciplinas contra as quais agora ele e seus correligionários se voltam: a Filosofia e a Sociologia.
É verdade que não se trata de termos neutros ou ingênuos, o que não significa, como as evidências apontam, quenão possam eles próprios ser manipulados de modo divergente do arcabouço que lhe deu vida. Na qualidade de conceitos, funcionam como ferramentas: respondem e são acionados para resolver um problema, uma questão. Se o pensamento não se alheia, mas compõe o tecido da experiência, se ele caminha com as coisas e a estas se mistura. É capaz de mobilizar ou incitar um fazer, podendo ser convertido em instrumento num determinado campo de prática. É ele mesmo prático: adiciona e modifica a realidade. E neste ponto não difere muito das invenções da Química, por exemplo.
Acontece que Bolsonaro se trai na medida em que não reconhece que a Filosofia e a Sociologia a ele foram úteis em sua escalada ao poder. De modo equivocado ou não, fidedigno ou impostor, recursos teóricos que ganharam o mundo lhe foram oportunos, vieram a seu auxílio quando mais precisava. Versões de sociologias e filosofias leigas tornaram-se, para o bem e para o mal, objetos de disputa.
É fácil concluirmos que sociólogos e filósofos prestam um serviço deveras significativo
Por um lado, a Sociologia e a Filosofia, identificada pelo atual governo com as alas progressistas da sociedade (mesmo que sejam muito mais plurais do que nos querem convencer), venceram; seus conceitos já são parte, operadores do mundo. Se a relevância de uma ciência e um campo de saber se manifesta quando invenções e descobertas extrapolam o domínio do laboratório e da universidade e se tornam, por assim dizer, usuais; se é quando seus estudos resultam em disponibilizar artefatos para não especialistas, é fácil concluirmos que sociólogos e filósofos prestam um serviço deveras significativo. Caso contrário, o governo seria a estes indiferente.
Por outro lado, essas áreas de conhecimento fracassaram. Mas é o risco assumido quando, felizmente, não nos encerramos à torre de marfim. A título hipotético, imaginemos o bem intencionado inventor do avião que desejava aproximar pessoas ver “sua” aeronave virar dispositivo de guerra e destruição. Todos os cientistas corremos o risco do aparato técnico mais sofisticado prestar-se a uma engrenagem rudimentar, para não dizer abominável.
A cada vez, porém, que observamos nossa produção, sobre cujo uso perdemos o controle ao alcançar o senso comum, ser empregada de modo inapropriado, ou mesmo ser rebaixada, sentimo-nos convocados a reconsiderá-la. Essa obrigação sobre o que criamos pode atender ao nome de... Responsabilidade. Se toda apropriação é uma prática moral, que pode resultar criativa ou ignóbil, é importante que sigamos vigilantes, sobretudo com aqueles que consomem o produto dos nossos mais obstinados esforços para em seguida corrompê-los e nos hostilizar.
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A Bolsonaro, cuja fórmula de patriotismo, a tirar por seu chanceler, é devotar-se aos Estados Unidos da América, sugiro finalmente um passeio pela história da Sociologia e sua disseminação pelo mundo, que data principalmente do pós Segunda Guerra Mundial. Naquele momento, o interesse pela Sociologia por parte dos EUA, cujo governo e grandes empresas (como a Ford) encarregou-se de financiar, foi imprescindível no novo fôlego de institucionalização que esta ciência tomara, ali e alhures. Ora, sociólogos contam com sensibilidade cientificamente orientada e habilidade técnica para compreender os agrupamentos humanos e suas transformações. E os EUA ou qualquer país que anseie intervir de modo eficaz no futuro de uma dada realidade (em geral é do que se ocupam governos) já entenderam que precisam aliar-se e cultivar um diálogo com estes profissionais, cuja expertise, por sua vez, é formada no ambiente escolar.
Mas “tá ok”, um país à sorte dos humores anti-intelectualistas já compreendeu: inteligência é artigo em falta entre Bolsonaro e sua turma.
Maycon Lopes é doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia, bolsista CNPq.
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