| Foto: Sérgio Lima/AFP

Vemos a história se desenhar em nossa face nestes períodos de mudança que ocorrem desde a última eleição. Talvez não tenhamos tido tempo de entender e compreender todos os fenômenos sociais e políticos que se desenrolam à nossa frente. O que aconteceu? Por que foi eleito um presidente médio, que reconhece não saber, tácita ou explicitamente, conduzir o Poder Executivo de um país com dimensões continentais? O que o brasileiro pensou ao eleger um presidente que não fala outra coisa senão sobre segurança pública, e se gabar de nunca ter roubado? Indagações que surgem de modo claro na sua oposição e, de modo disfarçado, quase que como um pecado de mente, para quem o apoia.

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Muitas são as respostas e conjecturas formadas: desgaste dos governos petistas, desejo de mudança ou de identidade nacional. Não quero me ater aqui ao mainstream, mas fazer uma análise baseada em grandes pensadores da política.

Platão, filósofo do século 4.º a.C. e autor de A República, entendia que um bom governo deveria provir de um governante filósofo, um pensador que dominasse vários conhecimentos, que buscasse única e exclusivamente o bem-estar de seu povo, completamente desinteressado em usar a sua posição para glórias e enriquecimentos pessoais. Isso contrariava aos sofistas, pessoas que dominavam a retórica para ensinar aos governantes da época como persuadir os cidadãos segundo os interesses de quem governava.

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A ideia sobre a república ideal de Platão destoa das inclinações do brasileiro, pois não somos – ainda, mas talvez nunca – um povo marcado pela intelectualidade

A ideia sobre a república ideal de Platão destoa das inclinações do brasileiro, pois não somos – ainda, mas talvez nunca – um povo marcado pela intelectualidade, que entende a necessidade de ter um governante polímata e sábio. Sabemos disso pela “qualidade” da educação brasileira. Somos público-alvo dos sofistas da atualidade, os marqueteiros, pessoas que sabem persuadir e ludibriar as massas. Embora a eleição de Bolsonaro tenha quebrado o paradigma do marqueteiro profissional, ainda assim o presidente eleito está longe de ser um intelectual e sábio.

Santo Tomás de Aquino, doutor da Igreja do século 13, em seu escrito De Regno (“Do Reino”), consolida a ideia do governante como condutor do povo à virtude. Em suma, o governante, além de decidir as questões do reino, responsável pela boa manutenção do seu Estado, deve também ser exemplo de virtude e um promotor da virtude de seus governados, colaborando para a salvação destes. Isso é motivado pela influência que a Igreja exercia na sociedade e nos governos. A sociedade do século 13 era teocrática, com o poder maior exercido pelo papado, o que consolidou a moral judaico-cristã, um dos pilares da cultura ocidental, junto com a filosofia grega e o direito romano.

Maquiavel, que viveu entre os séculos 15 e 16, na sua obra O Príncipe, quebrou os conceitos de Tomás de Aquino ao afirmar que um governante pode usar qualquer meio para se manter no poder. Maquiavel desconsidera que o governante deve colaborar com a virtude de seus governados, e nem cita isso na sua obra. Para ele, a virtude (virtù) nada mais era que a habilidade política de exercer controle sobre os interesses antagônicos dos nobres e do povo, a qualquer custo. Maquiavel distorce a ética na sua obra, mas isso não quer dizer que esta ética já não tivesse sido distorcida na prática. Maquiavel não trouxe nada de novo, apenas teve a coragem de relatar como se davam as relações de poder na época.

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Parece atual? É porque, da época de Maquiavel até agora, não houve uma evolução social significativa. A relativização da ética descrita por ele é esfregada em nossa cara a cada denúncia de corrupção. Vimos como o governo petista negociava ministérios como se distribuísse um pedaço de carne a um animal na jaula, sem o menor critério, apenas para satisfazer a coalizão de governo. Fomos roubados, graças à relativização da ética e da educação. Quase quebraram uma das maiores empresas do mundo, a Petrobras. Quase quebraram o Brasil.

Só nos demos conta quando o bolso doeu; quando, em 2015, a inflação passou de 10% ao ano graças aos preços que a então presidente segurou para se reeleger. Quando vimos nosso poder de compra esvaecer, quando já era quase muito tarde, acordamos. A sociedade brasileira é egoísta ao ponto de apenas se mexer quando algo está lhe prejudicando. Feito impeachment, novo presidente, novos escândalos, até que, por fim, vieram as eleições de 2018. Os acontecimentos seguintes se mostraram mais nobres que a sua causa original.

Era evidente que a ética, relativizada desde Maquiavel e sepultada pelos sofistas da atualidade, precisava ser resgatada, do contrário todos padeceriam. A desmoralização da classe política foi tamanha que criou um sentimento de revolta e de retorno às raízes mais fundamentais da sociedade. O povo brasileiro precisou voltar aos valores que se aprendem na família, na tradição, nos valores, na moral judaico-cristã. A sociedade brasileira encontrou o conservadorismo. O Brasil encontrou Olavo de Carvalho, Luiz Philippe de Órleans e Bragança, Luiz Felipe Pondé, padre Paulo Ricardo, pastor Cláudio Duarte, entre tantos outros. Foi daí que cresceu Bolsonaro.

Rodrigo Constantino: O fenômeno Bolsonaro (publicado em 7 de outubro de 2018)

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Bolsonaro aderiu aos valores conservadores, aproveitando-se de um fator positivo em seu currículo: nunca ter sido envolvido, ou nunca se ter provado envolvimento em caso de corrupção. Isso o fez obter uma votação esmagadora entre os evangélicos, maçons e imperialistas.

Além disso, mais um fator colaborou para o “fenômeno Bolsonaro”. O brasileiro, como povo latino, crê no salvador da pátria. Ele personaliza suas esperanças. Talvez isso provenha do próprio cristianismo como elemento fundamental da nossa sociedade. Foi assim com Pedro I, Getúlio, Juscelino, Lula... Quando está no desespero, surge o elemento que o resgatará, que lutará bravamente contra os inimigos e os vencerá. Isso pressupõe um inimigo. Todo herói combate alguém. A bola da vez para ser o inimigo era o PT – por extensão, a esquerda –, como já o foi a inflação, a ditadura, o Império, como o foi Portugal. O PT somente pode, ao ver do brasileiro, ser combatido por alguém que seja maniqueístico ao PT. Isso explica o fato de um candidato “bonzinho”, como Amoêdo, não atingir nem 3%: ele não era a antítese ao PT. Bolsonaro era e se tornou a personificação ideal do salvador da pátria frente ao inimigo antiético, imoral, corrupto e desprovido de valores, como o PT e a esquerda brasileira.

Bolsonaro não era um filósofo intelectual, como entende Platão ser um bom governante, mas quem o apoiava era influenciado, entre outros, por Olavo de Carvalho; logo, poderia ter a seu dispor os predicados intelectuais de um bom governante.

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Conservadorismo, figura messiânica... tudo certo! Só restava um problema: Bolsonaro não é exemplo de vida a ser seguido. Como sabemos, nosso presidente eleito não é um exemplo de virtude, nem de “bom comportamento”. Fez declarações não esperadas de um homem virtuoso, de moral ilibada e bons costumes, como aquela sobre o uso do apartamento em Brasília. Sempre quis enriquecer e não foi um bom militar. Ele é conhecido por falar demais, e o que vem à sua mente. Como fazer um ser como este personificar a ética e bons costumes, conforme o modelo de virtude proposto por Tomás de Aquino? Separando o seu comportamento privado do comportamento público. Tornou-se modelo não pelo exemplo, mas pela ideia que representa.

Nisto reside a mágica da personificação: ela é feita de ideias e de conceitos, e não necessariamente de fatos, de comprovações, de acontecimentos. É o eterno (ideia) que a molda, e não o efêmero (fatos ou acontecimentos). O fato de ele ter explodido um duto por aumento de salário quando estava no Exército, por exemplo, é menos relevante que a ideia de que Bolsonaro é honesto, calcado em valores e bom pai de família. E essa última é a que permanece.

Willian Fermino da Silva é especialista em Controladoria pela UFPR e graduado em Administração de Empresas pela FAE. Atua como administrador na Câmara Municipal de Campo Largo.