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Artigo

A difícil relação entre o Brasil e a realidade

Base Araucaria do Gasbol (Gasoduto Brasil-Bolivia). (Foto: Marcelo Andrade/Arquivo Gazeta do Povo)

“A realidade se impõe”

Para dizer o mínimo, o Brasil é um país sui generis. O compromisso com a seriedade é uma piada e com o conhecimento, praticamente nulo.  Aqui, uma pessoa sabe cinco palavras sobre um determinado assunto e dá aula. Outra coisa: É difícil? Então, eu só preciso daquelas cinco palavrinhas, o resto eu improviso.

Por exemplo, tomemos a entrevista de Paulo Guedes sobre o plano apresentado para o desenvolvimento da indústria e mercado de gás natural no Brasil. É evidente que o ministro não precisa conhecer profundamente a área, mas o mínimo que se espera é que seja assessorado por experts no assunto e isso, definitivamente, não acontece.

Um homem com uma formação acadêmica para lá de forte faz um papel ridículo diante das câmeras. A situação foi tão constrangedora que me lembrou o comportamento da Zélia Cardoso de Mello quando confiscou nosso dinheiro.

O plano apresentado é uma quimera, pois propõe o entendimento entre atores da cadeia de gás natural que têm posições diametralmente opostas e, além disso, parece que o Iago da tragédia é sempre a Petrobras. Peço ao leitor atenção germânica ao que será exposto; ao fim, será recompensado com o entendimento do mais simples e bem-vindo dos fatos: neste momento, o mercado de gás natural está aberto no Brasil.

Por incrível que possa parecer, na maior parte do tempo o Brasil é um país de instituições fortes e bem construídas

Para começar, é importante colocar que a grande fragilidade da indústria e mercado de gás natural – em todo o mundo – reside no transporte. No caso do gás boliviano, por exemplo. É possível adquirir o gás natural na Bolívia, transferir este gás do poço até a estação de compressão, comprimi-lo e colocá-lo no lado boliviano do Gasbol. Até aqui, estamos falando de quatro agentes desta indústria, quatro tipos de negócios cujo objetivo é fazer dinheiro: o produtor, a rede de transferência, a compressão e a transportadora.  Todos eles hoje trabalhando sob a vigilância da YPFB.

A título de exercício, suponhamos que José, devidamente autorizado pela ANP e pelo MME como autoimportador e carregador, vá até a Bolívia e trate com todos os agentes da cadeia de modo a adquirir um certo volume de gás natural.  Ao fim das negociações, ele terá o gás na fronteira com o Brasil.

Por uma conjunção astral favorável, neste momento existe um concurso aberto, promovido pela ANP/TBG, para venda de capacidade de transporte no lado brasileiro do Gasbol. José, muito feliz, participa do processo, compra o direito de transportar este gás, que estava na fronteira Bolívia-Brasil, até o city-gate – digamos, São Paulo.

O que obnubila a visão heterodoxa dos fazedores da política do gás natural no Brasil, quero crer, é a Constituição Federal, que diz caber aos estados a exploração dos serviços locais de gás canalizado.  Como o famoso estripador, vamos por partes.

Em primeiro lugar, as concessões para exploração dos serviços de distribuição de gás natural dadas em condições indecentes no fim do século passado já terminaram em grande parte do país, apesar de uma cegueira por parte dos grandes consumidores digna de um livro de Saramago. Em segundo lugar, por incrível que possa parecer, na maior parte do tempo o Brasil é um país de instituições fortes e bem construídas.

A ocorrência de um concurso aberto para venda de capacidade de transporte é a única possibilidade que o grande consumidor tem de exercer seu direito garantido pelo governo federal.  Para maior clareza, voltemos ao José. O gás natural que ele comprou na Bolívia está agora no city-gate, em São Paulo. É importante lembrar que, apesar de suas particularidades negociais, a indústria e mercado de gás natural funcionam – para quem entende – da mesma forma como qualquer cidadão sabe comprar uma aspirina na farmácia.

Neste momento, o mercado de gás natural está aberto, no Brasil

Com o seu gás no city-gate, custando pouco mais que 1/3 do que ele vinha pagando, o José pede: a) à agência reguladora estadual que estabeleça a tarifa de distribuição – dentro dos preços praticados no mercado internacional para o mesmo tipo de serviço – para que a distribuidora leve seu volume de gás natural que está no city-gate até sua unidade fabril; b) que a ANP autorize a construção de um duto de transporte, derivado antes do city-gate, para que ele próprio leve seu volume de gás até a unidade fabril. Caso a agência reguladora estadual se recuse a estabelecer a tarifa de distribuição para o gás de José, ele recorre ao Cade, comprovando a prática de venda casada; caso a tarifa arbitrada pela agência reguladora estadual esteja acima dos preços praticados internacionalmente, José recorre ao Cade por abuso de poder econômico.

Com os valores faturados pelas distribuidoras, é fácil entender a extensão de seus tentáculos, em que diretores de indústrias consumidoras fazem parte do conselho de distribuidoras em um imoral conflito de interesses; em que diretores de associações segmentais de indústria ou de grandes consumidores de gás natural, em repugnantes conluios que envolvem bilhões de dólares em isenção de impostos aos donos de distribuidoras, por exemplo, deliberada e orquestradamente desaconselham a participação dos grandes consumidores neste processo absolutamente claro e legal.

Contextualizando: sempre que há um concurso aberto para venda de capacidade de transporte em qualquer duto, no Brasil, o mercado de gás natural está aberto.  Já passou da hora de trazermos um pouco de ética e patriotismo ao mercado de gás natural. A subserviência evidentemente comprada com que as grandes distribuidoras são tratadas no Brasil destrói a indústria nacional – e isso ocorre com o triste "sim" de diretores de indústria que, como bonifrates, aplaudem a atuação política de quem lhes avilta.

Dentro do plano do gás natural apresentado pelo governo, talvez caiba uma vaquinha nacional, em que todos nós, brasileiros, colaboramos na importação de neve, justificando assim a existência das distribuidoras de gás natural no país.

Patrizia Tomasi-Bensik é engenheira e consultora da Planck E.

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