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Buscando paixão e aventura aos 88 anos, mas sem ingenuidade

 | Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo
(Foto: Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo)

Que eu tenha vivido tantos anos no novo milênio – 18 – quanto os transcorridos entre meu nascimento e o fim do ensino médio me parece inconcebível. Tenho 88 anos e, entre 1930 e 1948, passei de recém-nascido a adulto, de andar engatinhando a liderar um esquadrão de infantaria. Esses primeiros 18 anos foram uma jornada à vida adulta, enquanto o novo milênio parece apenas seu epílogo.

Com certeza não sou o mesmo homem aos 88 do que quando o milênio começou. Mas as mudanças em mim – rigidez, maior tendência a hematomas, lapsos ocasionais de memória – são insignificantes se comparadas com o estirão de crescimento aos 17 anos, que me levou de 1,73 m a 1,88 m. Espero ter ganhado sabedoria adicional durante o milênio, mas me sinto essencialmente o mesmo homem que era 18 anos atrás.

Esse contraste ficou muito claro recentemente, quando renovei minha carteira de habilitação. Um funcionário do departamento de trânsito, olhando para mim e para a fotografia tirada sete anos antes, disse que eu não tinha mudado a ponto de precisar de um novo retrato. Tão poucas mudanças físicas em sete anos! Somente minha mãe teria me reconhecido nas fotografias tiradas em um intervalo de sete anos durante meus primeiros 18 anos de vida.

O envelhecimento me colocou em uma correia transportadora que me leva pelos dias como se houvesse somente dois por mês, o primeiro e o último. Rituais diários como fazer a barba, escovar os dentes e me vestir me deixam intrigados – não acabei de fazer isso?

Estou ciente de que deveria estar agradecido pelo fato de os dias passarem correndo por mim

Às vezes penso no tempo como se fossem fatias de uma torta. Os verões não acabavam nunca quando eu tinha 6 anos, como um sexto de torta é uma porção generosa. Mesmo com uma faca bem afiada e mãos mais firmes que as minhas, fatiar uma torta em 88 pedaços está além da capacidade da maioria de nós. Esse pensamento me faz ver que a fatia de vida que ainda me cabe é muito pequena.

Estou ciente de que deveria estar agradecido pelo fato de os dias passarem correndo por mim. Tenho amigos doentes em desconforto quase constante que descrevem seus dias como “sem fim” e “sem ter o que fazer”. Um me falou há pouco tempo: “O tempo passa na mesma velocidade com que consigo empurrar este andador”.

Saber que estou a um tropeção de um andador tem me feito examinar como gasto os dias que me restam. Isso é mais difícil do que parece, já que minha mente muitas vezes parece um teatro, transformando o passeio mais casual em uma peça barulhenta com diálogo.

Será que a garota digitando enquanto corre percebe que vai bater em mim? Existem gerentes suficientes de fundos de hedge para encher todos os prédios de apartamento que crescem rumo ao céu? Enquanto cruzo a rua, o que tem mais chance de me atropelar: um táxi ou uma bicicleta?

O mais difícil para mim é refletir em silêncio sobre o caminho que tomei e aonde ainda preciso chegar. Sei que devo fazer mudanças profundas no meu comportamento se quiser recapturar a aventura e a paixão que vivenciei durante meus primeiros 18 anos de vida. Isso significa que tenho de estar disposto, aos 88 anos, a admitir que tenho de interromper hábitos confortáveis, mas confinadores.

O lugar onde começar era o teatro da minha mente. Li sobre um centro de treinamento cerebral que cuida de crianças com problemas comportamentais e de adultos entrando na demência. Liguei e perguntei se o programa de “neurofeedback” poderia auxiliar um cérebro saudável a conquistar um melhor equilíbrio entre as frequências barulhentas que enchem minha cabeça com tagarelices e as mais calmas e tranquilizantes. Disseram que talvez sim, então decidi participar de algumas sessões.

Acompanhei um terapeuta a uma sala à prova de som, onde eletrodos foram ligados a diversas partes da minha cabeça e conectados a um computador que media os padrões elétricos do meu cérebro. O objetivo do terapeuta era revigorar neurônios menos ativos – a parte raramente quieta do meu cérebro – enquanto reduzia os que disparavam com maior vigor.

Após seis sessões, eu não sabia dizer se minha mente atingiu um equilíbrio saudável entre a balbúrdia e a calma. Sei, porém, que emergi determinado a achar na vida diária a tranquilidade que vivi naquela sala. Embora medite há anos, a paz que sinto durante 30 minutos de atenção plena é rapidamente vencida pelo barulho da rua e na minha cabeça. Eu tinha de começar a trocar os dramas que transcorrem na minha mente pelo silêncio necessário para refletir como eu iria passar o tempo que me resta.

Estou tentando romper hábitos de formas mais tradicionais. A exemplo de muitos casamentos longos, minha esposa e eu gostamos de encontrar os mesmos amigos, assistir aos mesmos programas de televisão, frequentar os mesmos restaurantes, reservar férias nos lugares de sempre, evitar atividades que se aventurem longe demais do que é familiar.

Saber que estou a um tropeção de um andador tem me feito examinar como gasto os dias que me restam

Decidimos nos tornar mais aventureiros, acabando com alguns desses hábitos. Nossos amigos europeus sempre parecem encontrar tempo para um café da tarde ou taça de vinho, algo que nunca fazemos. Agora, espontaneamente, um de nós sugere ir a uma lanchonete ou café somente para conversar, e vamos. Está longe de ser uma revolução no estilo de vida, mas isso nos encoraja a examinar tudo que fazemos automaticamente, trazendo frescor a um casamento que começou quando Dwight Eisenhower foi eleito presidente.

Meu ritmo de exercícios também havia se tornado habitual: esteira, natação, exercícios de fortalecimento do abdome e treinamento de resistência. Observar outras pessoas se exercitando de outras formas me fez variar aquela rotina. Quando li a respeito de um programa de recuperação criado para um jogador do New York Giants que destroçara a mão, aquilo me fez pensar se eu poderia pedir coisas novas do meu corpo.

A academia por ele frequentada era perto da minha casa. Marquei hora com seu treinador e perguntei se ele poderia criar um programa bem menos rigoroso para mim. Ele acrescentou exercícios que eu nunca tentara, pedalar e correr em piques intensos breves, levantar pesos equilibrando-se em uma perna só, concentrar-se mais em movimentos de extensão e levantamento do que em imitar as funções da vida cotidiana, enfrentar a rigidez que acompanha o envelhecimento com alongamento, curvaturas e saltos. A rotina que agora faço é exigente mental e fisicamente, mas dentro da capacidade de alguém da minha idade, e eu a vejo como uma parte da minha intenção de pedir mais do meu corpo e da minha mente nesses últimos anos.

Nenhum desses esforços para me livrar de hábitos antigos irá acrescentar um dia a mais à minha vida, mas sinto que desci daquela correia transportadora e que estou sentindo um pouco da paixão e da aventura que sentia nos primeiros 18 anos da minha vida.

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