O artigo de Alberto Dines, no último sábado nesta Gazeta do Povo, provocou o texto de hoje. O lúcido escritor e jornalista começa dizendo que, como é sabido, 1666 foi um ano de controvérsias. E lembra a antinomia absoluta entre as expressões "annus mirabilis" (o poema de John Dryden, 1631–1700) e "annus horribilis", para observar que "cada Annus Mirabilis pode ser visto, revisto ou previsto como Annus Horribilis. Tudo depende do observador: se as cuecas recheadas de dólares são de companheiros, trata-se de verdadeiro milagre – poderia ser muito pior. Mas para as almas menos militantes a coisa pode ser considerada como calamitosa e humilhante. O fato é o mesmo; diferente é a percepção". ("Bolas de cristal", 31.12).

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A matéria é contundente ao noticiar que o deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), relator da CPI dos Correios – "uma das mais agradáveis surpresas nesta temporada de tremendas decepções humanas e políticas", saiu da Câmara para procurar, no Palácio do Planalto, apoio capaz de garantir-lhe os R$ 3,5 milhões devidos a cada parlamentar para investimentos em suas bases eleitorais. Mas só foi recebido por um funcionário do terceiro escalão. Conclusão de Alberto Dines: "É evidente que o mesmo governo que indicou Osmar Serraglio para a relatoria da mais importante CPI das últimas décadas não está satisfeito com o seu desempenho rigoroso e imparcial. E faz questão de demonstrá-lo. Nenhuma novidade. Surpreendente é a necessidade de um parlamentar que conduz com tanta competência as investigações sobre o maior escândalo parlamentar de todos os tempos ser obrigado a percorrer a humilhante via-crúcis para garantir sua sobrevivência política e os votos para o próprio mandato". ("Bolas de cristal", cit.).

Seguem-se outros comentários: a) pelo valioso trabalho em favor da República, o deputado Serraglio não precisaria de verba para escola, creche, estrada vicinal ou outro benefício popular a fim de voltar à Câmara ou chegar ao Senado: b) assim aconteceria numa "democracia plena, numa república decente e numa sociedade capaz de valorizar os atributos pessoais dos representantes do povo"; c) "não é o caso do Brasil"; d) um novo mandato estará em risco se o parlamentar não cumprir estritamente o seu papel "no jogo que nivela o baixo e o alto clero".

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O artigo oferece duas alternativas para 2006: a) se o paradoxo não incomoda e segue para a vala da corrupção dos costumes políticos, podemos imaginar que teremos o melhor dos mundos para os 12 meses; b) mas se o episódio "humilha e fere o nosso senso de justiça seremos premiados com o vaticínio de ‘Annus Horribilis’, 2006". Na primeira hipótese, não merecemos – como povo – coisa melhor; na segunda, teremos uma indispensável compensação: a mudança.

Mas penso que há uma terceira e consagradora via para o mandatário paranaense. Há poucos dias, na histórica Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, numa concentração do movimento coordenado pelo ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior (Da indignação à ação) eu presenciei o entusiasmo cívico da imensa assistência ao recebê-lo. Estudantes, parlamentares, profissionais liberais, líderes políticos, enfim, cidadãos prestantes aplaudiram em pé o seu corajoso pronunciamento.

Além do Paraná, todo o Brasil passou a admirar a dedicação, o equilíbrio emocional, o senso de justiça, a humildade e o zelo aplicados à causa de um mandato ético, destemido e fecundo.

Muitos esquecem em quem votaram nas últimas eleições. Isso não existe com os eleitores do relator da CPI dos Correios. E o número deverá ser generosamente multiplicado em outubro. É fácil olvidar procuradores infiéis. Trata-se de processo psicológico de resistência aos desenganos. Em tais casos – e são inúmeros – a "culpa" não é de quem vota.

"Cada homem é o escultor de si próprio", já foi dito por alguém. Poderia haver imagem melhor para as figuras públicas, separando-as como objeto de exaltação permanente ou de simples esquecimento?

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René Ariel Dotti é advogado e professor universitário; foi secretário de estado da cultura do Paraná.