Não há dúvida de que os modelos tradicionais de representação parlamentar, das chamadas democracias constitucionais liberais, se encontra em profunda crise e numa quadra particularmente difícil da história. Classicamente exercidas por meio de partidos – por regras jurídico-eleitorais ou por tradição histórica –, atualmente quase todas as democracias constitucionais consolidadas ao longo do “Breve Século 20” (na definição de Eric Hobsbawn), principalmente no pós-Segunda Guerra Mundial, enfrentam alguma espécie de crise de legitimidade da representação. Em muitos casos – como na Hungria, Polônia, Turquia, Venezuela e outros – essa crise descambou para um autoritarismo iliberal (no conceito de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt), de perigosa proximidade com o fascismo. Em outros, faz surgir debates acerca do fortalecimento de meios de democracia direta, com a participação imediata da cidadania organizada nos atos de poder (governar e legislar), e a discussão acerca de formas diferentes de exercício da representação da soberania popular.
O Brasil se encontra num limbo de uma crise entre essas duas situações. De um lado, corremos o sério risco de descambarmos para um autoritarismo iliberal, fulminando as instituições democráticas construídas desde 1985 – e sobretudo parametrizadas pela Constituição de 1988 – para nos transformarmos numa espécie caricata de uma Venezuela de extrema-direita. Mas, de outro, também percebemos emergirem dessa crise outros debates, sobretudo decorrentes de forças vivas da sociedade civil brasileira que, contestando em maior ou menor grau a exclusividade dos partidos políticos e dos mandatos unipessoais, propõe formas alternativas de exercício da democracia representativa.
É nesse cenário que se situa o debate acerca das candidaturas avulsas e, em especial, dos chamados mandatos e candidaturas parlamentares coletivos. Essas propostas são consequência da tentativa de oferecer soluções para a crise do modelo tradicional de representação dos partidos políticos, mas guardam uma diferença essencial entre si: enquanto os mandatos coletivos podem se viabilizar (como têm se viabilizado) sem exigir o afastamento do partido político da eleição, as candidaturas avulsas demandam a completa insignificância dos partidos para a manifestação da soberania popular.
As candidaturas e mandatos coletivos, diferenciando-se das candidaturas avulsas, pretendem que o mandato – tradicionalmente exercido, necessariamente, por uma pessoa física, individualmente, ainda que filiada e escolhida pelo partido político – seja exercido por um coletivo de pessoas, normalmente representantes de pautas e reivindicações específicas, das mais variadas origens, mesmo que formalmente tanto a candidatura quanto o exercício do voto tenham de ser exercidos por uma das pessoas integrantes do coletivo.
É nesse ponto que também se diferenciam: se de um lado as candidaturas avulsas são inconstitucionais e impossíveis de serem levadas a cabo no sistema jurídico da democracia representativa da Constituição de 1988, não vemos nenhum obstáculo para o exercício dos mandatos e candidaturas parlamentares coletivos mesmo com as atuais regras eleitorais e parlamentares vigentes. E isto porque constitucionalmente nada impede que, em vez de efetivamente centrar o exercício da representação no livre arbítrio da pessoa física candidata e eleita, possa a mesma, formalmente, parlamentar, materialmente agir e representar obedecendo a uma coletividade pré-definida em que a pessoa formalmente registrada como candidata (que deve ser filiada e escolhida em convenção partidária) só decida e vote de acordo com a deliberação do seu grupo de coparlamentares (denominação usada pelos que praticam essa criativa experiência). No estado de São Paulo, já há experiências de exercício de mandato parlamentar nesse sentido; nas últimas eleições municipais em Curitiba, houve a candidatura de uma denominada “Mandata das Pretas”, cuja identificação foi assim deferida, pioneira e corretamente, pela Justiça Eleitoral do Paraná.
Portanto, nada impede que, dentro das balizas legais vigentes do atual sistema eleitoral democrático-representativo, vicejem as candidaturas e mandatos coletivos. Entendemos, inclusive, que esse tipo de proposta, por combinar uma forma mais transpessoal de representação, respeitando o modelo partidário eleitoral vigente, constitui uma forma de incremento e avanço da democracia brasileira. Num momento triste, onde as piores trevas do século 20 parecem querem sair do ocaso para nos assombrar, não deixa de ser estimulante essa interessante ideia de radicalização da democracia.
Guilherme de Salles Gonçalves, advogado especialista em Direito Público e Eleitoral, leciona em cursos de pós-graduação da UEL e da UP e é membro-fundador do Instituto Paranaense de Direito Eleitoral (Iprade).
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