Se nada está na realidade política de um país que não esteja antes na sua literatura, como afirmou o poeta Hugo von Hofmannsthal, onde encontraríamos, na nossa literatura, a realidade política que vivemos hoje?
Em Cidade de Deus, de Paulo Lins, lançado em 1997 e levado aos cinemas em 2002, retrata-se os moradores como reféns da ordem imposta pelo crime, pelo Mal, protegida e abastecida pelo que deveria ser a força do Bem, a polícia, em quem não confiavam, nunca contando o que sabiam. Restava a resignação ou a ousadia do heroísmo. Mas quem teria coragem? As circunstâncias deram-na a Mané Galinha, que enfrentou o traficante Zé Pequeno e seu bando, sozinho, matando um e espantando outros 12. Interessante é a cena seguinte, com os moradores saindo de suas casas e o cumprimentando pelo feito. Ali vemos, pela única vez no filme, a população acuada aparecer, demonstrando que se não confiava na polícia, em “instituições”, tampouco queria a ordem criminosa. Tudo o que tinha, enfim, era ela própria, uns aos outros.
Se nada está na realidade política de um país que não esteja antes na literatura, então é prudente que as lideranças surgidas das manifestações aprendam com a ficção
Nada tem sido mais relevante nos últimos anos do que as manifestações populares, com suas passeatas e panelaços. Todas as tentativas de isolá-las – e neutralizá-las – como sendo deste ou daquele grupo ou classe social falharam. Pesquisas recorrentes apontando índices impressionantes de descontentamento geral da população com seus governantes e instituições não deixam dúvidas: a população acuada apareceu. E, se algo tem sido comum em todas essas manifestações, é o pouco ou nenhum apreço por políticos e a recusa, explícita, de representação partidária. O grito de “Fora!” unificou a todos, independentemente de seus rogos múltiplos e variados; se lideranças surgiram, foi a reboque, não sua causa.
Falando neles, nos líderes, Mané Galinha não durou nada no papel do herói, acabando por se tornar um dos chefes do grupo traficante rival. Herói mesmo surgirá em A Elite da Tropa, de 2006, escrito por André Batista, Rodrigo Pimentel e Luiz Eduardo Soares, obra famosa pelo filme nela baseado: Tropa de Elite. Sim, falo do Capitão Nascimento, que dispensa comentários, para o bem e para o mal. E quem assim o considerou foi o próprio público. Mas, na sequência feita do filme, ele foi reduzido à impotência, absorvido no sistema político, acabando por servir seus adversários, tendo destino não muito diverso daquele de Mané Galinha.
Se nada está na realidade política de um país que não esteja antes na sua literatura, então é prudente que as lideranças surgidas – e por surgir – das manifestações populares aprendam com a ficção. Porque se a literatura for realmente oráculo, a chance maior é termos, em futuro breve, apenas uma legião de Manés Galinhas. E o povo? Terminará como os moradores de Cidade de Deus, cujo fim é simbolizado na famosa cena inaugural do filme, com a galinha fujona nas mãos do narrador que se vê preso entre os traficantes e a polícia, dizendo: “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”.
Sim, eu sei, o poeta pode estar errado e todo o dito não passar de analogia tola e tosca. Mas, caso não, prometo jamais voltar aqui bancando a motoquinha do antigo desenho animado Carangos e Motocas, que no fim de cada episódio, com todo mundo tendo se dado mal e sem alternativa, sempre aparecia só para dizer: “Mas eu te disse, eu não te disse? Porque eu te disse”.
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