A Constituição Federal fala em “livre mercado” (art. 170) e classifica o Estado como “agente normativo e regulador da atividade econômica” (art. 174). Acontece que a realidade é totalmente diferente da lei sobre o papel. No fundo, temos dois mundos no Brasil: aquele bonitinho e perfeitinho, imaginado pela ingênua utopia do legislador; e um outro, feio e degradante, praticado cruamente pelos agentes do poder. Enfim, a vida como ela é difere substancialmente da vida como deveria ser.
Sem cortinas, esse é o grande problema de nosso país: a ineficácia prática das normas legais. Paulo Brossard, que muito viu e tanto fez com brilhantismo invulgar, teve como norte existencial a enérgica defesa da legalidade: boa ou má, a lei deveria ser aplicada, pois só assim poderíamos mudar a lei ruim e exaltar os sucessos da norma positiva. Ora, as regras do jogo são vitais para o bom desenvolvimento das instituições nacionais. E, como bem apontou Douglass North, o crescimento econômico está diretamente ligado ao qualitativo grau institucional das nações. Países prósperos são erguidos por instituições fortes, sérias e eficientes; países pobres são parasitados por instituições frágeis, desonestas e extrativistas.
Deitadas as premissas acima, o fato é que não temos capitalismo no Brasil. Nosso livre mercado é estatalmente dirigido, enquanto nossa livre concorrência é direcionada a favor dos amigos do poder. Alguns dirão que temos um capitalismo de Estado, mas não é verdade, pois em tal tipo de sistema econômico, embora permeado por uma maior intervenção pública, há necessariamente um governo ético, probo e decente. Logo, nosso modelo é outro. Vivemos um autêntico “capitalismo de conluio”, marcado por alianças espúrias entre empresas e o Estado. Nesta engrenagem econômica viciosa, o objetivo não é o desenvolvimento nacional, mas o aumento da riqueza pessoal dos artífices do mecanismo corrupto.
Portanto, a corrupção é uma forma de ganhar a vida no Brasil, beneficiando poucos em desfavor de muitos. Nesse contexto deformado, só teremos crescimento econômico sustentável quando desbaratarmos as quadrilhas de extrativismo estatal para ilícitos fins privados, garantindo, ato contínuo, a efetiva paridade de armas entres os agentes do mercado. O problema é que, enquanto há impunidade, os sistemas corruptos se estabilizam em uma situação de equilíbrio, privilegiando pontuais setores da elite política e econômica.
Nosso livre mercado é estatalmente dirigido, enquanto nossa livre concorrência é direcionada a favor dos amigos do poder
Para quebrar a inércia delitiva, se faz imperativo um fato desencadeador que atinja o núcleo do esquema, capturando algumas cabeças da engrenagem corrupta. Trata-se da aplicação da estratégia do frying a few big fishes, na qual o enquadramento daqueles que se achavam acima da lei vem a criar um momento proativo de elevação institucional do país. Após a captura e isolamento das peças iniciais, é imperativo romper o tradicional pacto de silêncio das organizações criminosas complexas. Para tanto, o uso eficaz de acordos entre acusados e promotoria (aqui denominados de “delação premiada”), com assunção de culpa, auxílio investigatório concreto e consequente diminuição de pena do réu, constitui poderoso e moderno meio processual de combate aos crimes de poder.
Todavia, paralelamente ao combate na via judicial, é fundamental alterarmos a estrutura do sistema político-econômico. Quando a corrupção vira um padrão de comportamento corporativo, as empresas são tragadas para o jogo sujo porque a regra passou a ser a ilicitude, a propina e o suborno. Isso não significa que o corruptor é um anjo inocente; apenas serve de alerta para o fato de que estamos diante de uma criminalidade sistêmica que, por falhas institucionais profundas, se tornou uma infeliz prática rotineira. Em outras palavras, com dinheiro e poder a rodo, alguns poderosos agentes político-econômicos ficam viciados no lucro fácil, chegando a pensar que a droga da corrupção é uma forma realista de viver a vida. Tal ilusão dura por tempo indeterminado, mas uma hora passa com a chegada, por exemplo, de uma Operação Lava Jato.
Entre as medidas necessárias para o resgate do bom funcionamento do sistema econômico, é fundamental o estabelecimento de efetivas e duras ações contra a formação de monopólios, oligopólios e cartéis negociais. A hipertrofia de grupos econômicos hegemônicos prejudica a livre concorrência, a igualdade de armas entre os agentes do mercado e a necessária abertura para um ambiente empreendedor saudável. Quanto mais fechada for a economia, maior será a chance de o mercado virar um feudo exploratório em favor dos amigos do rei e seus asseclas.
Estamos começando um difícil processo de transição no Brasil. O fundamental é mantermos o foco e não temermos o enfrentamento. O jogo é e será extremamente pesado, cheio de intrigas, ameaças, difamações e mentiras. A questão é acreditar e apoiar a força transformadora dos homens da lei. A corrupção é um inerente risco moral do bicho homem, mas com um pouco de vergonha na cara é possível construir um país muito melhor. Quem duvida?
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