Uma das principais promessas que as democracias modernas trouxeram para a população, principalmente no Ocidente, foi o conceito de prosperidade, uma melhora na qualidade de vida das pessoas que se representa pela maior quantidade de bens e serviços que elas podem consumir, o que implica em uma maior qualidade de vida para suas famílias, com mais educação, mais lazer, mais conforto e mais expectativas.
Ao longo da história, o capitalismo apresentou diversos desafios, principalmente nos momentos de crises, como em 1929 e 2007; essas crises se apresentaram como uma espécie de desafio para humanidade, dado que durante as crises financeiras a condição de vida da grande maioria da população piorou drasticamente e, com ela, década a década acompanhamos o surgimento de um problema crescente: a desigualdade entre nações e dentro delas.
Com a recente pandemia da Covid-19 e, consequentemente, com a crise econômica que abalou todos os mercados mundiais, as diferentes respostas aos problemas de distribuição de vacinas, lockdowns, apoio às empresas e às famílias, bem como outras ações mostraram o quão complexo é o equilíbrio do capitalismo e o quão rápido pode se aprofundar o fosso existente entre ricos e pobres. Para a parcela de 1% mais rica do planeta, a acumulação de riqueza torna-se algo natural, e uma perda pequena em seu patrimônio não afeta sua qualidade de vida; entretanto, para aqueles mais pobres, tornam-se dramáticas as diversas perdas na sua qualidade de vida, seja a impossibilidade de oferecer uma escola de qualidade aos filhos, não poder mais pagar o combustível do seu carro ou até mesmo ter de abdicar de seu plano de saúde.
O aumento do populismo e do nacionalismo exacerbado é um dos maiores indicativos de como a desigualdade é capaz de corroer nossas sociedades.
Todos esses problemas, de fato, abalam uma das principais características do capitalismo moderno: a capacidade de evoluir e de melhorar a vida de cada indivíduo. Consequentemente, as crises que ameaçam o capitalismo em si ameaçam indiretamente as democracias modernas, levando em consideração que após a Segunda Guerra Mundial os conceitos de democracia liberal e de capitalismo de mercado se tornaram a base do desenvolvimento social e, ao mesmo tempo, se tornaram elementos centrais dentro das sociedades modernas.
Disrupções nos orçamentos nacionais, quebra das cadeias produtivas, escolas fechadas e empresas em home office aceleraram ainda mais o processo, o que tornou mais nítidos os problemas causados pela desigualdade social. Além disso, o aumento do apoio aos políticos populistas, de direita e de esquerda, e o aumento do protecionismo em escala global aumentaram ainda mais o ceticismo de alguns em relação às democracias liberais. O aumento do populismo e do nacionalismo exacerbado é um dos maiores indicativos de como a desigualdade é capaz de corroer nossas sociedades, rasgando o tecido da coesão social e criando uma doença que conhecemos como “nós contra eles”.
Na Europa, a pobreza cresceu mais de 10% no pós-pandemia; nos Estados Unidos, mais de 2 milhões de famílias reportaram não ter alimentos suficientes para o mês. Com o fim dos esquemas internacionais de apoio às empresas e às famílias, que injetaram no planeta cerca de US$ 20 trilhões nos últimos anos, a evidente possibilidade é de que a desigualdade volte a aumentar. Neste contexto, é importante que o G20 passe a trabalhar em conjunto com as diversas instituições multilaterais internacionais para reorganizar a dívida soberana dos países em desenvolvimento para aumentar sua capacidade de investimento nesta situação ora emergencial.
A solução para a desigualdade não passa apenas por aumentar os impostos dos mais ricos, pois essa visão simplista de nada ajuda a resolver um problema estrutural. A redução da desigualdade passa por aumentar o acesso a educação, saúde, energia, internet e, principalmente, criar um sistema de renda mínima para a camada mais pobre da sociedade, que não possui nenhuma capacidade mínima de subsistência. Neste contexto, parcerias público-privadas para rodovias, escolas, internet e outros serviços são fundamentais.
Reformas tributárias devem ter como objetivo a elevação da qualidade em educação e em saúde, a simplificação de impostos para empresas, o aumento da empregabilidade e a criação de um sistema de segurança social para os mais pobres em momentos de crise, pois eles continuarão a existir; caso contrário, a crise não será apenas econômica, mas sim haverá contínuas crises de confiança na democracia ocidental e em todo um sistema econômico e político que estamos aperfeiçoando desde a Grécia antiga e o Império Romano.
Neste contexto, a transformação do programa Bolsa Família em Auxílio Brasil é, de fato, um dos mais importantes instrumentos que o Brasil pode criar como auxílio para a diminuição da desigualdade social. É importante lembrar que esse programa oferece a possibilidade de seus beneficiários decidirem o que querem escolher para suas necessidades sem necessariamente uma tutela do Estado, contudo mantendo obrigações como, por exemplo, a matrícula dos filhos na escola. Esse sistema, conhecido como Conditional Cash Transfer, não é exclusividade do Brasil e já funciona em diversos países como Indonésia, África do Sul, Turquia e Marrocos.
A desigualdade não é um conceito abstrato e precisa ser enfrentada com seriedade se queremos alcançar o potencial de nossa sociedade e garantir um futuro mais coeso e sustentável para as futuras gerações. A história já nos mostrou que o aumento da desigualdade tem implicações terríveis como o aumento da discriminação, a polarização social, o populismo e, principalmente, o aumento da pobreza geral da sociedade. Por isso, é importante que todos os governos, empresas e membros da academia estejam cientes de que, no século XXI, esse é um dos maiores desafios do capitalismo e das democracias liberais, pois o que está em jogo é a crença no nosso próprio sistema de sociedade e a melhoria de vida para todos.
Igor Macedo de Lucena é economista e empresário, doutorando em Relações Internacionais na Universidade de Lisboa, membro da Chatham House – The Royal Institute of International Affairs e da Associação Portuguesa de Ciência Política.
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