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De Marx, por Owen a Zizek, não faltam pensadores e teóricos que há séculos apontam as contradições e injustiças provocadas por um capitalismo desenfreado. Modelo este que hoje, em tempos de ESG, travestem a selvageria da busca por capital como algo anacrônico para os dias de hoje. Há, por certo, respostas mais contemporâneas como os empreendimentos colaborativos, B Economy, negócios de plataforma, crowdsourcing etc. E, conforme estes novos modelos são discutidos, parece-me que a personificação do capitalismo liberal no imaginário social, por meio das redes sociais, da mídia e da própria construção da sociedade em relação à figura do businessman – o engravatado que trabalha no topo do arranha-céu da grande metrópole – confere ao empreendedor, ou ao CEO de uma grande corporação, o papel de causa do problema ou, se preferirem, do grande vilão da história.
A minha proposta aqui não é, como se diz hoje, “passar pano” para as injustiças e desigualdades deste país, ou seja, negá-las e diminuir sua importância. É revoltante, sim, que um empresário entre para trabalhar em seu escritório luxuoso na Avenida Paulista, com seu terno de milhares de reais e sapatos importados, enquanto uma pessoa aos trapos dorme logo ali na calçada do prédio comercial, entorpecida por uma pedra de crack e privada de qualquer dignidade ou cidadania. Mas, com o fracasso dos governos na aplicação das políticas públicas, e da sociedade na fiscalização, inverte-se a lógica do contrato social em que empresas geram riquezas e pagam mais de R$ 2 trilhões em tributos por ano no Brasil, mas que não vão para o financiamento do bem-estar social. No lugar de cobrar os governantes, lutar para mudar o sistema e melhorar a escolha de nossos representantes, cria-se uma pressão social para que as empresas corrijam o que está errado com a sociedade.
Cabe mostrar que, entre os empresários e altos executivos, há, sim, muito joio no trigo, mas a grande maioria não passa o dia tramando um grande plano para despejar milhões de litros de lixo tóxico no planeta como muita gente deve fantasiar. A verdade é que a maioria de nós vive sob níveis insuportáveis de pressão. Acionistas não são organizações sem fins lucrativos; eles querem retorno significativo ou “se desfazem” da empresa. Os clientes estão cada vez mais exigentes; além de também viverem sob a enorme pressão por resultados, possuem alto poder de barganha, pois contam com muitas alternativas de fornecedores. São inúmeras as tentativas de fraudes, mas sem grande apoio das instituições.
Enfrentamos instabilidade política e econômica, oscilação preocupante da moeda e funcionários cada vez mais ávidos por oportunidades e salários, sem necessariamente acreditar em um plano de carreira ou lealdade, entre outras dezenas e às vezes centenas de gestões de crise que enfrentamos diariamente. Muitos não têm equilíbrio entre vida profissional e pessoal, perdem a cada dia um pouco da saúde física e mental, não veem os filhos crescerem, o divórcio está batendo à porta e, provavelmente, passa na cabeça dessas pessoas, de maneira muito frequente, desistir de tudo, pegar as economias e ir morar no meio do mato. E, ainda que o leitor logo se lembre daqueles salários astronômicos que lemos nas listas Forbes, acredite: não são todos! Há executivos que ficam meses sem receber salário e até aqueles que investem do seu bolso para tentar “salvar o barco”.
Negociamos com bancos e seguradoras que muitas vezes decidem se ainda existiremos amanhã ou se teremos de demitir dezenas, centenas ou milhares de famílias. Há de se lidar com interpretações dúbias de legislações, e constantemente se consultar com advogados – da área fiscal, trabalhista, criminal, contratos, propriedade intelectual, LGPD, entre outros temas. Há fiscalizações às vezes desproporcionais e, infelizmente, corrupção de agentes públicos. Para todo lado que se olha há disrupções acontecendo, sejam tecnológicas ou comportamentais; a impressão é de que a qualquer momento o seu negócio pode se tornar obsoleto. Quem consegue um bom investidor tem vantagem de ter capital barato que pode ser usado para contratar seus melhores funcionários, comprar concorrentes, conseguir melhores preços de fornecedores, subsidiar preços para ganhar mercado e lhe levar à ruína. Esta é a realpolitik dos negócios.
Como se tudo isso já não bastasse, o fator humano está por todo lado. É o funcionário que está com o filho doente, o que perdeu o pai para a Covid-19, aquela com o marido violento, aquele que está se entregando ao alcoolismo. Tive até funcionário com esposa que se prostituía para comprar drogas enquanto tinham cinco filhos para cuidar. As esferas pessoais e públicas das pessoas já não são mais separadas. Tudo isso vai afetar a empresa e precisa receber um tratamento. Ou seja, não é fácil a rotina de um executivo como muitos imaginam. Conheço muitos que ficaram completamente arrasados em ter de demitir funcionários ou fechar unidades de negócio em decorrência da pandemia. É um misto de culpa, um sentimento de mãos atadas, um nó na garganta e o fracasso pessoal. Ninguém monta uma empresa pensando em demissões, mas sim em crescimento e contratações. A cabeça manda ser racional, separar as coisas, manter o negócio aberto para não causar ainda mais consequências sociais. Mas no fundo não há como separar. As noites sem sono comprovam que não é possível separar as pessoas do negócio!
A “cereja do bolo” para o empresário moderno é o fato de aquilo que acontecia em dez anos hoje acontece muitas vezes em um mês. E, se ainda assim este relato não conseguir sensibilizar aqueles que demonizam a figura do empresário, vamos falar de um modo mais racional. Como já mencionei, são as empresas e as famílias (cujos salários são pagos pelas empresas) as grandes responsáveis pela geração de riqueza no país. São estes os recursos utilizados, ou que deveriam ser utilizados, para criar e aplicar as políticas públicas que poderiam conferir dignidade e cidadania àquele cidadão que está dormindo na calçada da Paulista.
Mas sou do grupo dos otimistas. Reconheço, sim, que os problemas são estruturais e mais complexos do que podemos imaginar; no entanto, é fato que o mundo está melhorando. Nos últimos 100 anos, provavelmente avançamos muito mais em questões sociais do que em todo o restante da história da humanidade. Por exemplo, se passamos séculos em que a maior parte da população era abatida pela fome, hoje este índice, segundo o Instituto Nacional de Estatística da Suécia, está em 11%, embora tenhamos a impressão de que seja muito maior. Então, apesar de toda a loucura em que vivemos, conseguimos feitos incríveis. Mesmo aqueles que focam na ganância, se geram empregos e riquezas, levam a um resultado fantástico.
É preciso deixar de lado o nosso ego para que esses malucos que muitas vezes criticamos – mas que, por outro lado, arriscam tempo, recursos, saúde e família –, os nossos empreendedores, melhorem ainda mais o mundo pelos próximos 100 anos também. Sim, eles querem enriquecer, e muito; com certeza alguns são puramente gananciosos. Mas, se isso nos ajudar a solucionar os problemas que assolam a humanidade, teremos salvo bilhões de pessoas. Vide o exemplo das vacinas para o novo coronavírus: hoje somos gratos pelos imunizantes produzidos por empresas com fins lucrativos. É como diria o nosso guru dos números, Hans Rosling, que fundou o site sueco: “A capacidade humana de buscar uma vida melhor avança mais rápido do que a economia”.
Daniel Schnaider é CEO da Pointer by Powerfleet Brasil e autor de “Pense com calma, aja rápido”.