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Dallagnol durante discurso na tribuna da Câmara em 30 de maio
Dallagnol durante discurso na tribuna da Câmara em 30 de maio| Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados.

Conforme fato amplamente divulgado no noticiário nacional, o colendo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por decisão unânime, determinou a cassação do deputado federal Deltan Martinazzo Dallagnol, apontando, para tanto, violação da Lei Complementar 64/90, cujas disposições, em 2010, restaram substancialmente modificadas pela festejada Lei da Ficha Limpa. No núcleo decisório, foi consignado pela Corte Eleitoral: “o conjunto probatório demonstra que o recorrido, visando não incidir na inelegibilidade do art. 1º, I, q, da LC 64/90, antecipou sua exoneração em fraude à lei”, utilizando-se “de subterfúgio para se esquivar da regra da alínea q, vindo a se exonerar do cargo de procurador da República antes do início de processos administrativos envolvendo fatos da Operação Lava Jato”. Tal decisão colegiada comporta recurso a viabilizar pertinente debate constitucional sobre a matéria.

De pronto, cumpre assinalar que o comando decisório do TSE possui consistente fundamentação jurídica, sendo a unanimidade do julgado firme sinalização da convicção que embasou o decisum. Todavia, diante da intrincada controvérsia posta, é possível que mais de uma interpretação jurídica se mostre razoável, legitimando, à luz das regras e princípios normativos aplicáveis ao caso, o salutar diálogo constitucional com vistas à realização otimizada da legalidade positiva. Na lição do ilustre professor Melvin I. Urofsky, autor de biografia definitiva do notável Justice Louis Brandeis, “o diálogo constitucional não ocorre no vácuo e, ao desenvolver nossa compreensão da Constituição, também nos molda como povo”. Em outras palavras, a dialética constitucional séria e responsável eleva a democracia e faz resplandecer o sentimento de justiça na sociedade política.

Será que o Estado de Direito aceita punições por inferências hipotéticas de procedimentos extintos sem decisão conclusiva?

Pois bem. A fundamentação jurídica do chamado “caso Deltan” autoriza debate constitucional sobre as garantias do devido processo legal, do ato jurídico perfeito e da presunção de inocência (art. 5°, CF/88). Objetivamente, a dicção do referido art. 1º, I, q, da LC 64/90 prevê a inelegibilidade de magistrados e membros do Ministério Público “que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar”. Ou seja, há dois pontos centrais de análise: determinar(i) se as sindicâncias e reclamações pendentes seriam “processo administrativo disciplinar” (PAD) nos termos da LC64/90; e, (ii) se o pedido de exoneração – antes de ato voluntário legítimo do pleiteante – o fora requerido intencionalmente para frustrar a continuidade de feitos administrativos e, por consequência, evitarpunições que conduzissem à inelegibilidade.

Sem cortinas, a primeira questão se resolve de forma objetiva: reclamações e sindicâncias não são PAD’s e, portanto, impassíveis de gerar inelegibilidade. Logo, sob essa ótica linear, a candidatura do deputado Deltan Dallagnol seria absolutamente regular. Quanto à segunda questão, adentramos no campo da subjetividade e dos intangíveis elementos de convicção decisória. Nessas situações, o controle da juridicidade se dá, forte no art. 93, IX, da CF/88, com base nos fundamentos da decisão e na sua inerente tradução de justiça concreta.

No caso, se, por um lado, o fato – pedido de exoneração do Ministério Público – sustenta a tese de fraude à lei com vistas a frustrar processos sancionatórios potenciais, do outro, também autoriza sólida argumentação no sentido de que a exoneração traduziu ato jurídico perfeito, extinguindo toda e qualquer pretensão punitiva estatal contra o ex-procurador federal. Quanto ao ponto, um detalhe de relevo: se o Ministério Público tivesse negado a exoneração ou condicionado à conclusão dos procedimentos instalados, a situação de fato seria diversa, reforçando a linha decisória do egrégio TSE. No entanto, salvo circunstância desconhecida, não há registro de condicionalidades à exoneração que, livre de amarras, aparentemente se perfez de forma irreversível, tendo efeitos consolidados por postulados de segurança jurídica.

Chegamos, então, a questionamentos nodais: a invocação retroativa de hipotética punição institucional não configuraria lesão à materialidade e rigor exigido pelo devido processo legal sancionatório? Será que o Estado de Direito aceita punições por inferências hipotéticas de procedimentos extintos sem decisão conclusiva? Diante da objetiva inexistência de PAD’s em curso, não vigoraria a plenitude constitucional da presunção de inocência, impedindo interpretações extensivas com restrição a direitos fundamentais? Aliás, o rigor hermenêutico adotado no caso Deltan não destoaria de linha mais branda adotada com candidatos preteritamente envolvidos em casos de corrupção, como o mensalão e o petrolão? Comportará, assim, o princípio da moralidade administrativa (art. 37, CF) relativizações pontuais ou será imperativo republicano inegociável da democracia institucional?

Sim, o caso apresentado é absolutamente rico em sua dimensão político-jurídica, permitindo amplo e necessário diálogo constitucional nos canais competentes. Nas entrelinhas dos acontecimentos, há, em curso, importante rearranjo de forças do poder, sujeito a lógicas sinuosas e a variações circunstanciais da realidade histórica. Tal pulsão do poder não configura fenômeno exclusivo brasileiro, traduzindo elemento sensível na complexa equação do equilíbrio global contemporâneo. A estabilidade soa frágil, pois as placas tectônicas da história estão em movimento, escrevendo novos capítulos no enredo – tantas vezes imprevisível – das relações humanas. Eis o entreato que estamos a viver. No fechar de cada tomo, sempre haverá um núcleo de poder hegemônico que, bem ou mal, dará a palavra final

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr. é advogado e conselheiro do Instituto Millenium.

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