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O número de mortes causadas por terroristas muçulmanos na Europa cresceu vertiginosamente a partir de 2015 e intensificou o medo da população europeia, que hoje vê no “jihadista” o tipo mais desprezível de ser humano – um indivíduo que, movido por antigas superstições, ignora os princípios da justiça e assassina inocentes. O que explica o surgimento e a intensificação do chamado “terrorismo islâmico” no Ocidente? E quais seriam, afora a atuação dos serviços de inteligência e a repressão policial, os caminhos rumo a uma possível atenuação ou mesmo uma solução do problema?

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Podemos identificar pelo menos três fatores do terrorismo islâmico: o primeiro é teológico/doutrinal; o segundo é psicológico; e o terceiro, fruto de determinadas políticas dos países ocidentais. O fator teológico remonta ao século 18, quando surgiu o movimento wahabita na região do Nejd, na Arábia. O clérigo Muhammad Ibn Abdul Wahhab, radicalizando posições assumidas por Ibn Taimiyya no século 13 e ignorando toda a tradição interpretativa do Alcorão e dos ditos do Profeta Maomé desenvolvida ao longo de séculos, promoveu uma releitura do Islã que pretendia recuperar a pureza original dos ensinamentos do Profeta. Os wahabitas condenavam práticas islâmicas de uso generalizado e acabaram por declarar que aqueles muçulmanos que não seguissem sua doutrina haviam abandonado a religião e mereciam a morte. Essa ideia motivou grandes massacres de comunidades muçulmanas já na virada do século 19 e pode ser vista como uma das matrizes ideológicas do terrorismo islâmico atual, visto que sanciona a morte de muçulmanos inocentes. A doutrina wahabita ganhou mais força no começo do século 20, quando a Inglaterra, em sua luta contra o Império Otomano, deu apoio à família wahabita dos Saud para conquistar o domínio da Península Arábica.

Qutb postulava a existência de um conflito contínuo entre os que aceitam as regras prescritas por Deus para a humanidade e os que as negam

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Outra matriz doutrinal surgiu no século 20, com o ideólogo egípcio Said Qutb. Também ignorando séculos de tradição interpretativa, Qutb postulava a existência de um conflito contínuo entre os que aceitam as regras prescritas por Deus para a humanidade e os que as negam, incluindo-se aí o Ocidente em geral. Qutb e seus seguidores reformularam a ideia de jihad ou guerra santa, a qual tradicionalmente pressupunha a existência de um Estado que a declarasse e o respeito às normas que proíbem, entre outras coisas, o assassínio de civis, mulheres, crianças, idosos e religiosos. O jihad ofensivo contra os ocidentais degenerados passou a ser visto, nessa ótica, como uma obrigação individual de todo muçulmano, o qual teria permissão para efetivá-lo sem observar as normas tradicionais. A junção dessas duas correntes ideológicas heterodoxas constituiu o chamado “salafismo jihadista”, o qual, repudiando 14 séculos de tradição islâmica ininterrupta, fornece um substrato teológico aparente para o ataque indiscriminado a populações civis muçulmanas e não muçulmanas. O termo “salafismo” designa a corrente islâmica que nega a tradição interpretativa e busca recuperar uma suposta pureza original da religião.

O segundo fator é um rancor de muitos muçulmanos que vivem no Ocidente contra algumas realidades sociais e políticas consideradas injustas: a situação de exclusão social em que vivem muitos imigrantes, vista como fruto do colonialismo europeu; a fundação ex nihilo do Estado de Israel, com o apoio incondicional dos Estados Unidos às políticas israelenses de apartheid e ocupação territorial ilegal; e a invasão e ocupação de países islâmicos por falsos pretextos, com a morte de centenas de milhares de civis em “danos colaterais”.

O terceiro fator é, paradoxalmente, o apoio ocidental a países e grupos islâmicos radicais a pretexto de combater a Rússia e seus aliados (caso do Afeganistão e da Síria) ou de “promover a democracia” (caso do Iraque e da Líbia); o vácuo institucional criado após a derrubada de regimes considerados inimigos acaba sendo preenchido pelos grupos radicais, e os países em questão tornam-se ninhos de atividade terrorista. Além disso, na busca por garantir uma aliança estratégica para seus interesses em petróleo, o governo americano apoia incondicionalmente a Arábia Saudita, berço da doutrina wahabita e principal responsável pela disseminação do salafismo em todo o mundo por meio da fundação de mesquitas e centros islâmicos que disseminam a doutrina salafista.

Leia também: O Islã é compatível com a modernidade? (artigo de Ali Zoghbi, publicado em 1.º de dezembro de 2017)

Rodrigo Constantino: O mito da Idade de Ouro islâmica (publicado em 19 de junho de 2018)

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Vê-se, assim, que o terrorismo islâmico é fruto de uma aliança inglória entre um Islã heterodoxo e atitudes políticas profundamente equivocadas das potências ocidentais, que em geral não têm sabido escolher seus aliados muçulmanos. Entre estes, os salafistas radicais representam uma minoria – dotada, porém, de armas (muitas vezes fornecidas pelo próprio Ocidente em suas intervenções militares) e dinheiro (dos petrodólares da Península Arábica). Já os muçulmanos tradicionais, que somam pelo menos 75% dos muçulmanos do mundo, se pautam pelo ideal de convivência entre as diferentes religiões, como se vê no fato de o Iraque e a Síria terem abrigado as mais antigas comunidades cristãs do mundo até o surgimento do Estado Islâmico – este, sim, mais um fruto podre da árvore salafista.

No trato com os muçulmanos e o mundo islâmico, portanto, os países ocidentais devem exercer um controle judicioso sobre a propaganda religiosa salafista. Ao mesmo tempo, devem privilegiar a interlocução com o Islã tradicional e majoritário, cujos líderes espirituais e políticos se pronunciam a todo momento contra o terrorismo e implementam políticas antiterroristas de grande eficácia, como se vê no Marrocos. Por fim, estudos do serviço secreto britânico e do francês Olivier Roy mostram que, ao contrário do que se pensa, a disseminação de ideologias assassinas convence sobretudo jovens sem instrução religiosa; constatou-se que, quanto mais um muçulmano se aprofunda nas doutrinas tradicionais de sua religião, mais imunizado ele está contra todo tipo de radicalismo heterodoxo. O apoio ao Islã tradicional, combinado com uma política externa mais justa e prudente, representaria para o Ocidente um grande passo rumo à solução do problema do terrorismo.

Marcelo Brandão Cipolla é tradutor, editor e estudante de Ciências Islâmicas no Marrocos.