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Causas justas não justificam ações injustas
| Foto: Bigstock

É indiscutível que as diferenças individuais devam ser respeitadas, que ninguém seja discriminado por motivo algum e que as oportunidades se repartam igualmente a despeito de condição ou lugar de origem, religião, opções sexuais ou cor da pele. É evidente também que, além de imoral, o racismo é crime e, por isso, sua prática precisa ser coagida e punida na forma da lei. Contudo, a defesa dessas atitudes – mais que atitudes, valores da sociedade democrática moderna – não deve ir além de sua causa justa, transbordando para a instigação de outras condutas e comportamentos inadequados em si mesmos e potencialmente nocivos ao tecido social.

Combater os atos de racismo é plenamente justificado e necessário, mas promover a “consciência negra” não é correto do ponto de vista ético, em razão de não consistir em uma prática que se possa estender indistintamente, segundo o famoso imperativo categórico de Kant. Celebrar a “consciência branca”, por exemplo, não seria moralmente justo ou admissível. Enaltecê-la poderia ser um ato legítimo de reconhecimento a todas as conquistas da “raça” caucasiana no campo das ciências, das artes, da filosofia e da literatura, mas a consciência branca, junto ao trigo de suas notáveis contribuições para o espírito e o progresso humanos, traz inapelavelmente junto o joio de suas muitas vilanias; a par de Schiller e Beethoven, da comunhão entre a Ode à Alegria e a música magistral da Nona Sinfonia, ela carrega também a mácula indelével dos ódios nazistas.

A “consciência negra”, por sua vez, não se nutre apenas da imensa riqueza cultural dos povos negros, da profunda espiritualidade que os anima e da exuberante musicalidade e da resistência extraordinária de sua gente, pois também traz a marca de suas inúmeras vilezas.

Os militantes do movimento negro – pródigos em condenar o passado (naquilo que lhes convém) – deveriam deixar de lado o orgulho de “raça” e refletir sobre a porção de culpa que lhes pesa sobre a consciência negra em decorrência do profundo envolvimento de seus antepassados na escravização dos próprios congêneres, pois os povos negros da África já não se escravizavam entre si muito antes de os europeus lá chegarem? Não eram os próprios régulos africanos e seus sequazes os principais fornecedores de cativos para esse mercado hediondo e os primeiros a lucrar com o sofrimento de seus companheiros de cor? A consciência negra não se atormenta com as muitas barbaridades cometidas contra sua própria gente, sendo o genocídio de 1994 em Ruanda apenas a mais notória pela culminância de sua sanha assassina a ferro frio, e a mutilação ritual do clitóris das meninas, uma prática odiosa contra a sexualidade feminina? No que respeita à atualidade, a exaltação da “consciência negra”, como forma orquestrada de afirmar o orgulho de “raça” em meio às sociedades de hoje – sempre racistas no imaginário generalizante dessa consciência –, não deixa de ser perniciosa, pois embute o risco de despertar o germe do radicalismo excludente e raivoso, potencialmente nocivo se deixado florescer.

Todos nós, independente de “raça”, etnia, cultura ou nacionalidade, compartilhamos a mesma natureza humana, portadora potencial das mesmas virtudes e dos mesmos vícios. Não cabe a nenhum tipo particular dessas expressões humanas exalçar-se acima das demais, supervalorizando-se e atribuindo-se exclusivismos e dignidades superiores ou distintos das outras: a história já demonstrou sobejamente os malefícios disso.

Convém, ainda, atentarmos ao fato de que, em nossas sociedades democráticas, passou-se da preocupação legítima com o direito das minorias ao culto exacerbado da pluralidade ou, melhor dizendo, do identitarismo, centrado nas disparidades entre grupos específicos e a maioria – a entronização absoluta de todos os padrões comportamentais minoritários. Quantas letras mais se acrescentarão à sigla LGB original?

Não cabe a nenhum tipo particular dessas expressões humanas exalçar-se acima das demais, supervalorizando-se e atribuindo-se exclusivismos e dignidades superiores ou distintos das outras: a história já demonstrou sobejamente os malefícios disso

Os sociólogos sabem perfeitamente que a coesão de uma sociedade baseia-se no sentimento de identidade de seus membros. A atual ênfase exagerada nas particularidades que diferenciam as pessoas, cor da pele, opções sexuais, religião etc. – como se a exaltação desses atributos meramente superficiais fosse a verdadeira manifestação do ideal democrático – em detrimento da essência que as une, a condição humana, possui crescente capacidade de desagregar, de gerar problemas e de criar antipatias, inquietações e desarmonia social.

Para os ideólogos das políticas identitárias, não lhes basta o simples respeito e a não discriminação. Eles insistem em sua visão enviesada do ideal democrático a fim de fazer a sociedade majoritária como que envergonhar-se de suas próprias crenças e comportamentos, levando-a, assim, a aceitar, como regra geral, a imposição de suas visões e modos peculiares de ser (a exemplo, entre muitos outros, da pressão para modificar o idioma com a inclusão do gênero neutro ou da transformação por motivos ideológicos da palavra “mulato” em termo ofensivo). Recorrendo a uma expressão vulgar, eles querem que o rabo abane o cachorro.

Com a condenação da mulatice, os ideólogos do movimento negro pretendem tornar negras por decreto todas as pessoas que carregam alguma porção de sangue negro em suas veias, à semelhança do que se praticava por força da lei nos Estados Unidos segregacionista e ainda se pratica por costume nos EUA das liberdades civis, mas que nunca foi a nossa maneira de ser.

A ação divergente, à semelhança das leis físicas que regem o movimento dos corpos, tenderá sempre à divergência, pois é impossível que deixe de divergir e se volte espontaneamente para a convergência a partir de determinado momento. Aqueles valores acima citados devem, sim, ser perseguidos e preservados com afinco, mas em prol do reconhecimento e da valorização da condição humana, a essência unificadora, e não de orgulhos particularizados, que distinguem e apartam.

A única consciência capaz de nos guiar com justiça e equanimidade rejeita a restrição dos adjetivos. É a consciência pura e simples, humana por sua própria natureza, inspirada pelo bem e aglutinadora de todos os exclusivismos e particularidades. Para tanto, é necessário o espírito de concórdia, e não os particularismos viciosos.

Talvez precisemos refletir como fez Pablo Picasso: “Cansei de ser moderno, quero ser eterno”.

Marcelo Serrano é coronel da reserva.

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