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pobreza dinheiro
| Foto: Brunno Covello/ Arquivo/ Gazeta do Povo

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou recentemente os dados de desigualdade social no Brasil até 2022. Será que temos razões para celebrar os 135 anos de abolição com o menor nível de desigualdade no Brasil dos últimos dez anos? Pelo menos, até o ano passado, o Brasil ficou socialmente um pouco mais justo – explicado pelo aumento de empregos e investimentos no país. E agora, como ficamos?

A desigualdade social é medida pelo Índice Gini, criado pelo italiano Corrado Gini em 1912.  Hoje o país mais desigual no mundo ainda é a África do Sul de Nelson Mandela. Ficou claro que a desigualdade de renda na África do Sul não é uma questão racial, mas de emprego. O país com maior igualdade de renda é a Eslováquia, seguido de Bielorrússia e Eslovênia – todos homogeneamente com baixa paridade no poder de compra, alta taxa de inflação, alto déficit nas finanças públicas e alto custo no serviço da dívida.

Carlos Drummond de Andrade que me perdoe, mas nenhum anjo torto nos diz para sermos gauche na vida.

Há um antigo debate filosófico sobre a natureza humana. Num exemplo muito simplificado, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) achava que todos nascem “bons” e a sociedade nos torna “maus”. Thomas Hobbes (1588-1679) achava que todos nascem “maus” e precisamos da sociedade para nos mantermos “bons”.

A realidade, como sempre, acaba sendo uma mistura dessas duas coisas. O fato é que temos dentro de cada um de nós o lobo e o cordeiro. Carlos Drummond de Andrade que me perdoe, mas nenhum anjo torto nos diz para sermos gauche na vida. Somos anjos ou demônios a cada dia. E a vovozinha nunca nos ensinou direito a identificar os lobos vestidos de cordeiro nessa selva quase civilizada onde a gente vive.

Temos todos uma grande simpatia por questões de “justiça social” talvez porque, como queria Rousseau, somos essencialmente gente decente. Mas por que a justiça social virou monopólio intelectual da "esquerda"? Vou deixar de lado meu desgosto por rótulos e, por uma questão de simplificação, arriscar uma resposta bem simples: a “esquerda” conseguiu emplacar a imagem que a “direita” é má, cruel, capitalista, dinheirista, egoísta, nazista. E a “esquerda”, segundo a própria esquerda, seria a única força angelical que se preocuparia com o bem-estar de todos de forma “justa e democrática”. Assim como o nazista Goebbels, a esquerda conseguiu repetir essa mentira tantas vezes que virou verdade. E essa mentira se perpetua através de estereótipos que fazem parte de um equivocado inconsciente coletivo.

A vovozinha nunca nos ensinou direito a identificar os lobos vestidos de cordeiro nessa selva quase civilizada onde a gente vive.

Respeitados acadêmicos escrevem livros sobre o Brasil geralmente ilustrados com fotos do Rio de Janeiro mostrando prédios residenciais no primeiro plano e favelas ao fundo. Vocês já viram centenas de fotos assim. Dizem que a imagem retrata bem a desigualdade social no Brasil. Com todo o respeito, tenho que discordar. Não, a foto não reflete apenas desigualdade. Reflete hipocrisia.

Como todos sabem, os morros ao fundo são chamados de favelas. Cada uma delas é dominada por um "chefe". Cada chefe ganha milhões com o tráfico de drogas. Os traficantes têm uma hierarquia bem-organizada sob eles, incluindo laços com políticos corruptos e crime organizado. Quem viu o filme Cidade de Deus tem uma vaga ideia do que estou falando. O público consumidor de suas mercadorias – as drogas – vive nos prédios altos em primeiro plano. São em geral pessoas de classe média que vivem na ilusão de que um carismático político de esquerda promoveria a "igualdade social". Aqueles que vivem nas favelas parecem ter duas opções: ou trabalham para os traficantes de drogas ou, em sua maioria, levam uma vida modesta e honesta. São gente decente que não quer problemas e está integrada – formal ou informalmente – na economia da cidade.

Ninguém é desumano a ponto de não defender a igualdade social. O problema é que alguns sempre acabam mais iguais que outros, como concluiu George Orwell. 

Essa é a verdadeira desigualdade: a guerra de Canudos gerou migrações que iniciaram as favelas, transplantando o coronelismo do Nordeste para os morros do Rio de Janeiro. Os milionários e os politiqueiros donos de cada morro desenvolvem relações clientelistas com os moradores suprindo pequenas necessidades básicas em um espaço onde o Estado normalmente não quer ou não pode entrar. O coeficiente Gini de qualquer favela no Rio deve ser mais desigual do que África do Sul, Namíbia e Suriname combinados: bandidos milionários associados a corruptos igualmente milionários convivendo com trabalhadores pobres e humildes.

Para complicar as coisas, também há milícias que “protegem” os habitantes dessas áreas periféricas cobrando taxas de proteção e outros serviços. E há também os “contraventores”, que vendem pequenas ilusões na forma de prêmios do jogo do bicho. Dizem que são honestos nos resultados, bons pagadores e patronos de escolas de samba. No Carnaval – a maior festa da hipocrisia nacional – todos se solidarizam com algum grande conglomerado de mídia que compra os direitos de transmissão do desfile de escolas de samba. Aí, então, celebra-se por três dias o luxo de ser pobre, ou algo assim, como disse Joãozinho Trinta.

Os traficantes, os políticos corruptos, a milícia, os contraventores e os chefes do crime organizado tendem a ser milionários de bom coração que defendem da boca para fora a "igualdade social". Aliás, todos defendem igualdade social. Ninguém é desumano a ponto de não defender a igualdade social. O problema é que alguns sempre acabam mais iguais que outros, como concluiu George Orwell.

Já decidi que não quero ser rotulado de “direita” nem de “esquerda”. Como milhões de brasileiros, sou a favor da ética, da honestidade e da decência. Esses três valores automaticamente resultam em justiça social. A história mostra isso. E tenho certeza: a maioria da população de qualquer favela é formada por gente ética, honesta e decente.

Como milhões de brasileiros, apenas sou contra corrupção, banditismo, toma-lá-dá-cá, nepotismo, tráfico de drogas e de influência; sou contra gente que promove miséria para viver no luxo, enfim, apenas sou contra essa grande onda de hipocrisia que parece ter tomado conta do país. Parece que isso me transforma em conservador, direitista, liberal, gado, patriota, tudo bem.  Amém.

Jonas Rabinovitch é arquiteto urbanista com 30 anos de experiência como Conselheiro Sênior para inovação e gestão pública da ONU em Nova York. 

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