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Cenas inéditas no Vaticano

Renúncia, hipocrisia, renovação – palavras-chave de uma semana fadada desde já a entrar na história não apenas da Igreja Católica, mas também do pensamento ocidental. O ponto alto do pontificado de Joseph Ratzinger não foi sua ascensão como Bento XVI, mas a forma escolhida para retomar o seu nome de batismo e encerrar a sua missão formal.

Em abril de 2005 os vaticanistas – especialistas em assuntos seculares da Santa Sé – o classificaram prospectivamente como papa-tampão, transitório. Previam um mandato linear, desatentos à extensa e sutil gama de elementos espirituais geralmente postos a serviço dos intelectuais alemães. Geist, em seu idioma, é muito mais do que "alma"; é também moral, refinamento, entendimento superior, transcendência.

Na segunda-feira, a palavra usada para descrever a decisão papal foi "renúncia"; mais exato seria o substantivo "abdicação": o sacerdote Joseph Ratzinger abriu mão do poder num mundo cada vez mais polarizado em busca de poderes, mas não capitulou como ser pensante, sensível, responsável, com uma noção muito clara dos deveres humanos.

Os pretextos iniciais de doença e fragilidade ou não foram bem entendidos no latim do primeiro comunicado ou foram interpretados na escala de valores simplista da comunicação contemporânea. A verdade é que dois pronunciamentos depois este senhor de 85 anos, alegadamente debilitado, estava em plena forma.

Na última quinta, durante 45 minutos, naquele que deverá ser o último encontro com o clero da diocese romana, com extraordinária firmeza convocou a Igreja para uma "verdadeira renovação". E ainda teve ânimo para enfocar questões altamente controversas e delicadas, como as distorções da mídia na cobertura do Concílio Vaticano II (1962-1965) e a responsabilidade dos católicos alemães no Holocausto.

O sermão na missa da Quarta-Feira de Cinzas, talvez o último, conteve uma candente denúncia contra a hipocrisia religiosa e foi consagrado por uma ovação dos presentes, de pé, estendida ao longo de vários minutos. Cena raramente vista no Vaticano.

As corajosas opções de Ratzinger acionam naturais remissões históricas e não apenas no tocante a um Gregório XII forçado a renunciar há cerca de 600 anos para evitar uma fatal fragmentação da Igreja. Mais recentemente, há apenas 500 anos, outro sacerdote e teólogo alemão, igualmente bem fundamentado, denunciou a hipocrisia que imperava na Cúria Romana sob a forma de venda de indulgências.

Martinho Lutero foi excomungado pela Igreja, perseguido pelo imperador, resistiu e produziu o maior cisma dentro do cristianismo. Nem tudo o que pregou estava correto; a epilepsia ou a megalomania o distanciaram dos princípios éticos da sua cruzada anticlerical, mas a sangria do cisma luterano não pode ser desconsiderada mesmo meio milênio depois. A humanidade é a mesma.

Ao clamar contra a hipocrisia e proclamar a necessidade de renovação em seguida à inesperada abdicação do imenso poder pontifício, Joseph Ratzinger exibe surpreendente rejuvenescimento. Sereno, desafiante, mostra aos vaticanistas e aos que neles confiam que a transição começa agora.

Terminado o pontificado, pode começar um apostolado. Esta também é uma situação inédita nos anais do Vaticano.

Alberto Dines é jornalista.

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