Em um salão suntuoso, dirigentes da Ordem dos Advogados do Brasil se reúnem, brindando com champanhe, whisky importado e saboreando iguarias pomposamente nomeadas. Enquanto um deles discursa acerca de como a instituição tem cumprido corajosamente seu papel, à meia-luz, murmúrios revelam acordos escusos e inconfessáveis. Esse cenário retrata uma hipocrisia muito comum nos ambientes elitizados da advocacia, em que a retórica pública contrasta cruelmente com os bastidores de extremo clientelismo e patrimonialismo que tomaram conta da OAB e por isso uma restruturação é necessária.
Enquanto advogados se sacrificam ao pagar suas anuidades, com remunerações pífias e confinados em baias de grandes escritórios ou sofrendo as agruras do impiedoso ambiente da advocacia autônoma, dirigentes da entidade, em salões dourados, tramam artimanhas para se manterem no poder a qualquer custo, bebendo do doce mel dos favores do rei – o Estado. Apenas os incautos não percebem o quão deletério pode ser este quadro para a advocacia e para a própria sociedade.
A lei federal que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia (8.906/94) atribuiu à OAB finalidades que vão muito além da defesa da própria advocacia, estabelecendo como desígnios institucionais defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas. Além disso, a própria Constituição conferiu à Ordem o poder de indicar membros de tribunais, compor os conselhos da magistratura e Ministério Público, propor ações de controle de constitucionalidade e compor bancas de concursos da área jurídica.
A razão de ser de uma instituição com tais prerrogativas está na própria concepção do nosso contrato social, em que o povo delegou ao Estado e seus organismos o exercício do poder sobre a sociedade, reservando aos seus membros, em contraponto, o direito de crítica e censura aos abusos e à tirania, como forma de orientar a ação política de seus representantes eleitos e garantir a liberdade política de seus membros.
A Ordem dos Advogados, portanto, como diriam os teóricos funcionalistas, tem a função, dentro do tecido organizacional da sociedade, de exercer os poderes de crítica e de ação que lhe foram conferidos contra os abusos do poder estatal e a violação das liberdades e direitos civis. Inobstante, o que observamos atualmente é uma OAB incapaz de reagir e se posicionar firmemente contra inúmeros episódios de violações de direitos individuais, excessos e censura praticados pelas altas cortes do país.
No nível estadual, advogados experimentam o nítido encolhimento de suas prerrogativas, aumento desproporcional de custas processuais (como ocorrido em Mato Grosso do Sul), sem qualquer reação da instituição. No nível municipal, longe dos ambientes palacianos, a sensação é de total desamparo para os advogados.
Um recente estudo sobre a advocacia, realizado pelo Conselho Federal da OAB e a Fundação Getúlio Vargas, revelou que mais da metade dos advogados do Brasil tem a sensação de que as condições do exercício da advocacia têm piorado gradativamente. A razão desta clara negligência institucional não pode ser outra: a OAB foi cooptada!
O que está em pleno curso na OAB não é novidade. Os romanos utilizaram largamente esta estratégia de dominação por séculos, aliciando governantes de outros povos com favores, posições de poder, privilégios e riquezas em troca de uma relação de lealdade e subserviência. A esta relação, deram o nome de “patronato” ou “clientela”. Daí decorre o termo: “clientelismo”, empregado neste texto anteriormente.
Raimundo Faoro, por ironia, um dos grandes presidentes da OAB nacional, em Os Donos do Poder, descreve bem o fenômeno do clientelismo como a distribuição de recursos e cargos do Estado para beneficiar uma elite política e econômica em detrimento do bem e do interesse público. O paralelo com a OAB indica claramente que a elite da advocacia está totalmente inebriada pelos favores do poder, minando sua capacidade de atuar de forma independente e em prol da advocacia e da sociedade.
Quem tiver a pachorra de acompanhar de perto uma sessão do Conselho Federal, ou mesmo do Conselho Seccional de Mato Grosso do Sul ou consultar as pautas com os assuntos tratados em cada uma delas, certamente ficará constrangido, diante da absoluta escassez de temas realmente relevantes para a sociedade e a advocacia. O tempo é gasto, quase integralmente, para acertos de favores pessoais, indicações de cargos, escolha de membros de listas sêxtuplas para tribunais, homenagens, acerto sobre alianças para as próximas eleições e o preço de cada apoio. Uma simples reforma do prédio da OAB em uma cidade do interior, por exemplo, pode fazer com que lideranças daquela cidade esqueçam rapidamente seus discursos ideológicos e se comprometam com antigos adversários, sobre os quais sempre tiveram grandes reservas.
Trata-se de uma realidade profundamente prejudicial tanto para a sociedade quanto para a própria advocacia. A formação de uma casta nos altos escalões da Ordem, empenhada na preservação de seus próprios interesses em detrimento dos valores fundamentais da instituição, mina a credibilidade e a eficácia da advocacia como um todo. Nesse contexto, advogados desavisados são frequentemente utilizados como peões em um jogo de poder no qual não compreendem inteiramente as regras, sendo instrumentalizados para a perpetuação de uma estrutura que os oprime.
A luta pela manutenção do status quo na OAB não apenas prejudica os advogados que a compõem, mas também compromete a capacidade da instituição em cumprir seu papel de guardiã da justiça e dos direitos individuais. Ao sucumbir aos interesses de uma elite fechada e autorreferente, a OAB sacrifica sua missão primordial em prol de uma agenda corporativa que serve apenas aos interesses de seus próprios dirigentes.
Diante dessa realidade desoladora, torna-se imperativo um movimento de mudança dentro da Ordem dos Advogados do Brasil. A necessidade de uma reestruturação profunda, baseada na coragem e em princípios de transparência, democracia e compromisso com o bem comum, é mais urgente do que nunca.
É chegada a hora de os advogados brasileiros unirem-se em prol de uma OAB verdadeiramente representativa e comprometida com os interesses da advocacia e da sociedade. Somente assim poderemos resgatar a nobreza e a dignidade da classe, restaurando a confiança pública na instituição e assegurando que ela cumpra efetivamente sua missão de defender a advocacia e promover a justiça e a equidade para todos os cidadãos. Que essa chamada à ação desperte em cada advogado o desejo de contribuir para uma mudança positiva e transformadora dentro da OAB, rumo a um futuro de maior justiça e igualdade para todos.
Jully Heyder da Cunha Souza é advogado.
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