Antes mesmo da ascensão da ordem mundial pós-1945, com o estabelecimento do sistema das Nações Unidas e dos organismos de cooperação internacional, o Direito Internacional Público já identificava a existência de um princípio da não-intervenção (também denominado de princípio da não-ingerência) na condução das relações entre os Estados e povos. Trata-se de princípio elementar à plena soberania dos países, naquilo que tange sua dimensão interna, isto é, o poder de governar, legislar e julgar os conflitos domésticos sem a participação de sujeitos políticos estrangeiros, estranhos ao interesse nacional.
Nesse mesmo espírito, a Carta das Nações Unidas também é clara quanto à legitimidade desse princípio, verdadeira norma de conduta, sujeitando todos seus Estados-membros ao seu reconhecimento. Ocorre que, para nenhuma surpresa, nem sempre os Estados, sobretudo os autoritários comunistas, respeitam a independência das demais nações, atuando por meio de intervenções contrárias ao Estado de Direito. Essas violações, cujos exemplos mais explícitos seriam os conflitos armados, enquanto os implícitos as operações de espionagem, são medidas que, no passado da Guerra Fria, foram origem de vários conflitos nos países recém descolonizados e posteriormente desestabilizados pelas guerras civis que se seguiram. Com a queda do muro de Berlim, esse passado teria permanecido no passado, mas esse não é o desejo da China Comunista.
Essa política de intimidação e ameaça só existe, ou pior, só tem crescido, em razão do “apoio silencioso” que muitos países têm dados aos agentes de segurança do Partido Comunista.
Em relatório recente, publicado em dezembro de 2022, a organização não governamental Safeguard Defenders, criada para denunciar as violações contra os direitos humanos continuadamente cometidas por Pequim, publicou seu mais amplo estudo sobre a existência de delegacias policiais chinesas ao redor do mundo. Essa rede de opressão, que já vinha sendo noticiada antes, chama mais atenção pela dimensão que alcançou recentemente ao estabelecer presença em pelo menos 102 diferentes países. Seu objetivo? A execução de operações de persuasão de retorno de exilados políticos chineses, que haviam se refugiado em outros países, tendo em vista a impossibilidade de sua extradição.
Ainda assim, surpreende que, segundo o relatório, essa política de intimidação e ameaça, por óbvio contrária ao princípio da não ingerência, só existe, ou pior, só tem crescido em razão do “apoio silencioso” que muitos países têm dados aos agentes de segurança do Partido Comunista para manterem a perseguição às comunidades chinesas ao redor mundo, omissão comprada por meio de esquemas de corrupção e financiamento de obras públicas. Quando essa tática não é suficiente, são os familiares dos exilados, ainda presentes na China continental, que sofrem a intimidação das autoridades policiais, o que na prática obriga o retorno dos inimigos políticos do partido sem a necessidade de requerer sua extradição, que jamais seria permitida.
Por fim, o relatório conclui com um último questionamento: se isso tudo tem ocorrido, por que a opinião pública permanece silenciosa? Por que isso não tem sido noticiado? Assim como alguns Estados têm sido complacentes, não é demais cogitar que a atuação do governo chinês também conta com o apoio da grande mídia na expansão do programa de delegacias no exterior. Por meio de uma rede de jornalistas independentes, a Safeguard Defenders busca romper esse “silêncio”, mobilizando governantes e a opinião pública pelo fechamento dessas estruturas de repressão extraterritoriais da China Comunista.
Estima-se que mais de 11.000 dessas operações já foram realizadas com sucesso. Mais estão em curso, com mais delegacias em construção. Mais países, mais cidades. Mais controle, mais intimidação. Qual será o limite?
Rhuan Fellipe Cardoso da Silva, advogado, pós-graduando em Direito Internacional e porta-voz do movimento Democracia Sem Fronteiras Brasil.