De todos os conflitos entre EUA e China nos últimos anos, a parte comercial e tarifária é a que mais tem chamado a atenção até agora. De fato, seus efeitos desestruturantes terão impacto direto e imediato sobre a economia global. Mas a disputa sino-americana tem várias frentes e uma das que tem crescido bastante, sobretudo após a eleição de Trump, é a disputa geopolítica, na qual Taiwan é peça central. Em abril de 2019, completam-se 40 anos da aprovação, pelo congresso norte-americano, da Lei de Relações com Taiwan, considerada o principal marco jurídico do relacionamento bilateral. O aniversário da lei coincide com um período de tensões crescentes nas relações sino-americanas e sino-taiwanesas que trazem riscos potenciais à paz e estabilidade mundiais.
A lei foi aprovada numa época em que a rivalidade sino-americana passava por um momento de distensão quase três décadas após a ascensão ao poder do Partido Comunista Chinês, a fundação da República Popular da China e a fuga de Chiang Kai-shek e demais líderes do partido Kuomintang para Taiwan em 1949. A China tinha sido aceita como único representante chinês na ONU, em substituição a Taiwan, em 1971, e tinha recebido a visita do então presidente Nixon no ano seguinte.
Para contornar o estabelecimento de relações diplomáticas entre EUA e China em janeiro de 1979, a lei deu base legal e aparato institucional para que os EUA mantivessem relacionamento “comercial, cultural e outros” com Taiwan na ausência de reconhecimento diplomático. Dessa forma, continuariam tratando a administração taiwanesa com uma entidade em separado, embora de maneira não oficial.
O redirecionamento para a Ásia da política externa norte-americana iniciado por Obama ganhou novos e inéditos contornos com Trump
Diferentemente de 40 anos atrás, a complementaridade econômica que deu o ritmo da relação nas últimas décadas deu espaço para uma rivalidade aberta entre os países. O redirecionamento para a Ásia da política externa norte-americana iniciado por Obama ganhou novos e inéditos contornos com Trump. Para além da guerra tarifária, que até o início desse ano já custou € 5,7 bilhões à China e € 2,6 bilhões aos EUA segundo o instituto alemão Ifo, o relacionamento com Taiwan entrou na estratégia trumpista de confrontar o país rival, e mesmo antes de sua posse. Em dezembro de 2016, Trump atendeu um telefonema de congratulações da dirigente taiwanesa Tsai Yin-wen, a primeira conversa entre líderes dos EUA e da ilha desde 1949.
Outras medidas e provocações se sucederam. Logo no início do governo, em 2017, foi aprovado novo pacote de venda de armas a Taiwan que pode chegar a US$ 1,4 bilhão. Em 2018, foi promulgada a Lei de Viagens a Taiwan, estimulando funcionários públicos norte-americanos a viajar à ilha e vice-versa, o que contorna restrições legais que datavam a 1979. Foi igualmente inaugurada a nova sede do Instituto Americano em Taipé – considerado a embaixada de facto dos EUA –, com espaço para quase 500 funcionários, em sua maioria diplomatas.
As recorrentes escalas técnicas nos EUA dos voos da Tsai Yin-wen também passaram a ganhar perfil mais amplo. Em uma das mais recentes, além de encontrar-se com congressistas locais e participar de jantares, foi acompanhada por jornalistas taiwaneses e visitou o consulado de facto de Taiwan em Los Angeles – atividades inéditas na história recente.
Ao mesmo tempo em que Trump acercava-se de Taipé, as relações no estreito de Taiwan foram deteriorando-se. Após anos de relativa aproximação que culminaram no sem precedentes encontro do presidente Xi Jinping com o então líder taiwanês Ma Ying-jeou em Singapura, em 2015, a eleição de Tsai Yin-wen em 2016, o discurso pró-independência de seu partido e sua relutância em reconhecer abertamente o princípio de “uma só China” reverteram a rota de cooperação bilateral.
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Pequim rompeu a trégua tácita na disputa por aliados diplomáticos que vigorava antes e passou a cobiçar os parceiros taiwaneses. Em menos de dois anos, conseguiu persuadir cinco países a cortarem relações com Taipé – sendo três latino-americanos –, reduzindo seu número de aliados a somente 17. Passou também a restringir as viagens de seus nacionais à ilha, que caíram de 4,2 milhões em 2015 para 2,7 milhões no ano passado. Empresas aéreas, rede de hotéis como Marriott, lojas de roupas como Gap e Zara e organizações internacionais foram pressionadas recentemente a se referirem a Taiwan como parte integrante da China.
Em suas visitas internas e viagens internacionais, Xi Jinping tem buscado assegurar seu compromisso com o rejuvenescimento da nação chinesa, no qual estaria incluída a integridade territorial do país. Em recente discurso de comemoração dos também 40 anos da Mensagem aos Compatriotas de Taiwan, carta de janeiro de 1979 que oficialmente inaugurou a política de reunificação pacífica, o presidente chinês apresentou essa reunificação como tendência histórica a ser realizada com base no princípio de “um país, dois sistemas”, mas não descartou o uso da força se necessário. Pequim também tem deixado claro que não ficará silente a provocações: em fins de março último, após Trump prometer vender até 60 aviões de combate aos seus aliados, o que seria a maior venda desde 1992, 2 jatos chineses sobrevoaram o estreito que divide Taiwan da China continental, fato inédito em 20 anos.
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Independentemente do resultado das atuais negociações comerciais entre EUA e China, é previsível que a rivalidade bilateral não arrefecerá em outras frentes. A questão de Taiwan sempre foi um componente sensível na relação EUA-China e hoje não é diferente: no governo Trump, tornou-se um dos principais fatores de atrito na atual disputa estratégico-comercial. A contar pela determinação chinesa de unificar o país e a decisão norte-americana de contrapor seus rivais, a questão de Taiwan no relacionamento bilateral certamente ainda está longe de terminar.
Pedro Henrique Batista Barbosa é diplomata e doutorando em políticas internacionais na Universidade do Povo da China (Renmin University). As opiniões expressas pelo autor são pessoais.
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