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MR é um amigo meu, homem da academia, às voltas com uma tese em Ciências Sociais sobre o futebol e a fé religiosa. Por isso passou a me consultar com frequência, buscando subsídios para seu trabalho. Repassei ao pesquisador algumas constatações feitas nos dias desta Copa do Mundo que acaba amanhã. Uma delas, a ausência, nas janelas das cidades grandes, de símbolos, enfeites e estandartes religiosos para assinalar a festa do Corpus Christi, como antes ocorria. Em compensação, oito dias depois, em 11 de junho, a cidade vertical e o país todo se en­­­­feitavam de bandeiras do Brasil, marcando a genuflexão da Na­­ção às chuteiras em disputa na África do Sul. E compungidos se mos­­travam 180 milhões de "fiéis", rezando pela seleção brasileira.

Corpus Christi não passou batido, é claro, pois muitas ruas, país afora, transformaram-se em tapetes para celebrar a procissão eucarística. Mas tudo sob um entusiasmo contido, nada surpreendente na sociedade cada vez mais secularizada.

Deixamos de ser religiosos em nossa relação com os cultos estabelecidos? Não, somos mais ou menos 90% dos brasileiros tementes a Deus, diz o IBGE, a grande maioria filiada a alguma igreja. É verdade que o reinado da Igreja Católica (Roma locuta, causa finita, Roma falou, está falado) apresenta debilidades detectadas pelos números, que também apontam o crescimento do fermento evangélico pentecostal. Uma realidade que não deve persistir, segundo o mais abalizado dos pesquisadores universitários especialistas em pentecostalismo, Ricardo Mariano, da PUC-RS. Para ele, a reação católica está a caminho, com conquistas, quem sabe, propiciadas por ações como a dos carismáticos católicos. A armada do Papa estaria entrando em campo?

A Fifa tentou, por determinação oficial, barrar manifestações de fé religiosa dos jogadores, considerando-as inapropriadas para o mundo da Copa. Mas elas ocorreram: houve um jogador da seleção de Gana que se ajoelhou em posição de fiel islâmico, agradecendo a Alá por sua performance. Kaká, que é pastor da Renascer, deixou bem visíveis seus momentos de agradecimentos ao Senhor, com braços levantados em sinal de prece, e com olhares grudados no firmamen­­to. Sofreu até, alegou perseguição por parte do jornalista Juca Kfouri, a quem reprovou por tentar cercear, disse, sua fé religiosa. "Você é ateu, deixe-me viver meu cristianismo", bradou o jogador.

Robinho e outros da seleção foram flagrados pelas câmeras fazendo o sinal da cruz, o sinal dos cristãos, identificador dos seguidores de Jesus desde o começo do cristianismo. Sinal que é marca do catolicismo, do romano e do ortodoxo, e do anglicanismo (assim como algumas igrejas episcopais anglicanas).

A própria seleção brasileira teria levado um pastor batista, de Curitiba, para oferecer apoio espiritual aos canarinhos, fato amplamente noticiado à época da partida dos jogadores. O pastor desapareceu do noticiário. Pressão da Fifa?

O que se constata, tenho dito ao meu amigo pesquisador, é que a seiva religiosa é muito forte no meio futebolístico brasileiro. Houve época de quase obrigatória presença de um "capelão" católico nos times de futebol. Aqui mesmo em Curitiba, padre Paulo Jubel, do clero diocesano, um homem com preparo acadêmico clássico, especialista em heráldica, foi apresentado, anos seguidos, como orientador de selecionados de futebol. E o bicheiro Castor de Andrade, do Rio, fazia do seu Bangu um apêndice da paróquia ca­­tólica que frequentava e do santo que lá se venera. E como esquecer o caso tão fartamente noticiado da suposta ligação do São Caetano, de São Paulo, com igrejas evangélicas, especialmente quando o time andou vencendo todas?

A Fifa teve que se dobrar a uma das imagens mais fortemente ligadas ao cristianismo, a do libertário arcebispo anglicano Des­­mond Tuttoo, prêmio Nobel da Paz, que foi o espetáculo do show de abertura da Copa.

A dependência das chuteiras aos desígnios celestes foi ganhando coloração protestante a partir da criação, há 30 anos, do grupo Atletas de Cristo (inicialmente centrados no futebol). É um vigoroso exemplo de quão dependente das chuteiras celestes estão os homens responsáveis por encantar o país o ano todo.

É bem verdade que Bruno, o suspeito de ser o mandante do assassinato de uma jovem com quem tivera um filho, não possa aparecer nessa relação dos born again, os renascidos pelo fogo do evangelismo. De qualquer forma, ele não dispensou uma Bíblia em baixo dos braços, na hora da prisão, em 8 de julho.

Nesse caso, a religião parece ser puro pretexto para exibir suposta boa índole. Mas apenas reforça a presença do sobrenatural nas relações com as chuteiras. Para o bem e/ou para o mal.

Aroldo Murá G. Haygert, autor da coleção Vozes do Paraná, jornalista, é professor coordenador do Projeto Memória Paranaense do Grupo Uninter, pesquisador de novos movimentos religiosos cristãos. É presidente do Instituto Ciência e Fé, de Curitiba

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