Temos hoje fatos extraordinários no cenário político que vão desde mudanças no governo até pedidos de impeachment de seu chefe, tudo em volta de dilemas e convicções sobre os limites que ciência e política devem ter. Mas quanto e como a ciência e a política são causas fáticas de conflitos?
O filósofo John Gray afirmou em 2015 que a diferença entre uma e outra é que “a ciência está em contínuo e irreversível progresso, enquanto os avanços na política podem ser perdidos rapidamente”. Crença comum de que a política não tem o mesmo compromisso com o tempo e a regularidade de progresso da ciência, o que as fazem diferentes e incompatíveis.
Tais divergências podem ser atribuídas a conceitos particulares de ciência e de política, quando nem sempre prevalecem os mesmos termos de equidade nas análises, como a própria ciência recomenda. Enquanto a ciência pode ser vista como promotora de avanços em favor da humanidade, a política nem sempre é vista como um legítimo e democrático meio de diálogo em favor do bem comum. A ideia comum é a da má política, na qual interesses particulares prevalecem sobre os da sociedade.
Conflitos e dilemas de coexistência entre ciência e política têm sido observados, mais notadamente em sociedades modernas, face aos desafios do Estado em garantir a participação democrática do cidadão e atender aos interesses da vida burocrática do Estado. Na ocasião, esses objetivos eram percebidos como incompatíveis. À época, a ciência ganhava espaço na política e da gestão do Estado, quando sugiram os movimentos em defesa da expertise e da avaliação como critérios para a construção de políticas públicas em razão das evidências científicas, como explicou Steve Rayner.
Ciência e política nunca tiveram valoração conceitual pacífica. Dilemas e contradições sobre os papéis de cada uma sobressaíram, particularmente nas democracias modernas, a ponto de se estabelecer forte corrente de pensamento em favor da fática separação entre elas, baseada na crença de que, enquanto a ciência se firmava no conhecimento e nos fundamentos técnicos e científicos, a política sofria de dilemas insolúveis em volta das paixões e contradições humanas. Assim, para proteger a ciência, foi dado a ela o princípio de neutralidade e da autonomia na condução de seu próprio destino.
De tal forma, defendeu-se que a sociedade e o Estado deveriam ser conduzidos pela “racionalidade dos que sabem”, nas palavras de Simon Schwartzman, sobrepondo assim à política e afastando da sua vida a influência humana, com os seus desejos inconciliáveis e desprovidos de conhecimento científico. Seria, então, a democracia relativizada pelo empoderamento do Governante Esclarecido, sendo ele o único capaz de promover o bem comum.
Nessa linha, Thomas Hobbes (1588-1679), filósofo, defendeu que os homens deveriam ser submetidos a um poder absoluto, centralizado e baseado no conhecimento científico, pondo fim “às controvérsias e diferenças de opinião, decorrentes das inconciliáveis paixões humanas”. Já o Conde de Saint-Simon (1760-1825), filósofo tecnocrata, defendeu que a dominação do homem pelo homem seria substituída pela “administração das coisas”, um conceito baseado na expertise e na ciência como forma de “substituir as ideologias conflitantes e prevalentes à época”, na descrição de Frank Fischer. Na mesma linha, Auguste Comte (1798-1857), filósofo, afirmava que, “graças à ciência, a humanidade poderia livrar-se da política”.
Max Weber (1864-1920), jurista e economista, parecendo mais cético em relação a esses pensadores, questionou: “Qual o significado da ciência como vocação?” É inegável que a ciência não dá tal resposta, visto que não se presta a orientar valores humanos, tanto quanto suplantar a política em sua missão de promover o debate democrático. Nesse sentido, a política, como depositária dos anseios da sociedade, deve anteceder e orientar a ciência no sentido de indicar o que a sociedade espera dela, pois não há ciência sem propósito humano.
Tal como na política, a ciência necessita do controle social fundado na ética e em valores democráticos para que não perca rumo de missão e, assim, servir também a interesses escusos. A ciência produz vacina para pandemias virais, mas serve também como instrumento da guerra biológica. Assim, não se vê pureza compulsória na ciência autônoma, e sim no quanto é possível haver ética nas políticas que a orienta.
Por mais, se a ciência ganha autoridade a partir de sua capacidade de dar suporte à formulação de políticas públicas com evidências científicas, o inverso, quando, na sua pretensa supremacia, a ciência se alvitra a conduzir a formulação da política pública, não alcançaria os interesses da sociedade, mas sim os vigentes na esfera científica. Se assim se queira, reforça-se o princípio de que a ciência, com o seu Governante Esclarecido, poderia equivocadamente prevalecer sobre a política e os interesses do povo.
Ao zelar pelos valores que envolvem a política e a democracia, a ciência se torna mais ética.
Eli Moreno é economista, pesquisador da economia social, Estado e sociedade, e consultor de desenvolvimento de negócios.
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