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Final da segunda década do século XXI, pleno desenrolar da chamada Quarta Revolução Industrial,em que a tecnologia digital/virtual toma o centro dos processos econômicos e palavras como “inovação” e “empreendedorismo” aparecem em onze em cada dez textos sobre negócios. Um cenário extremamente favorável – melhor: rentável – para a ciência, essa casa perene de quem busca soluções, conhecimentos, alternativas, novas formas de enxergar e explicar o mundo e de interagir com ele.

No entanto, não é o que se constata, e isso em dois sentidos: globalmente, há uma crescente onda anti-intelectuais e anti-ciência, cujo exemplo mais grave é o ceticismo a respeito do aquecimento global (e o mais patético, o da teoria da Terra plana); nacionalmente, vemos um movimento contínuo de cortes no orçamento para ciência e tecnologia nos últimos anos – desde o final do governo Dilma e durante todo o governo Temer.

Temos exemplos formidáveis de sucesso na área: Embrapa e Embraer

O antigo Ministério da Ciência e Tecnologia, atual Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações (adendo de Dilma Rousseff) e Comunicações (fusão de Michel Temer) teve seu orçamento drasticamente reduzido de pouco menos de R$ 10 bilhões, em 2015, para aproximadamente R$ 5 bilhões na Lei Orçamentária Anual de 2017. Com o contingenciamento anunciado pelo governo federal, o orçamento do MCTIC ficou reduzido a R$ 2.8 bilhões, um bilhão a menos que o custo do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ) no presente ano. Sim, um ministério – na verdade, dois ministérios fundidos em um – cuja função é investir em projetos científico-tecnológicos que impulsionem a inovação no país, principal mola propulsora da economia nos moldes atuais, tem seu orçamento reduzido a quantias irrisórias.

O que dizer a esse respeito?

Em primeiro lugar, há um desprestígio simbólico implícito na fusão das pastas de ciência e tecnologia (e inovação) e comunicação. Sob a justificativa usual de corte de gastos, o governo deixou claro o papel secundário que cabe a ciência e tecnologia em seu projeto (?) de país. Para adicionar insulto à injúria, como se diz, veio a nomeação do ministro Gilberto Kassab, totalmente alheio à pauta e sem o menor trânsito – ou credibilidade – no seio da comunidade científica.

Em segundo lugar, revela-se um jogo midiático do ajuste para inglês ver. Qual o sentido de impor cortes tão severos a um ministério de orçamento tão relativamente pequeno? A comparação com o TJ-RJ serve para mostrar como o MCTIC representa muito pouco dentro das despesas da União. Reduzir suas verbas é mais uma jogada de marketing do que uma tentativa real de atingir o – necessário – equilíbrio fiscal.

Em terceiro lugar, trata-se de um corte burro, muito burro. E isso por duas razões: não só investimentos em ciência e tecnologia costumam gerar frutos multiplicados em recursos futuros – patentes, empregos, aumento de produtividade e lucro, etc. – como também, dada a natureza dos investimentos, são planos de médio e longo prazo, o que implica que o corte presente pode ter efeitos retroativos de perda de investimentos. Exemplo: um laboratório de física de partículas demora anos para ser construído, mais alguns para ser equipado com recursos humanos, outros para entrar em funcionamento efetivo e, a partir daí, mais um par para começar a entregar pesquisas terminadas. Digamos que o processo demore dez anos; ora, cortar investimentos no sétimo ano implica não uma redução de gastos nos dois ou três anos seguintes, mas uma perda irrecuperável do investimento realizado nos seis ou sete anteriores.

Opinião da Gazeta: Os investimentos na ciência (editorial de 28 de fevereiro de 2012)

Leia também: Não é inteligente cortar verbas de ciência e tecnologia (artigo de Ricardo Marcelo Fonseca, publicado em 23 de agosto de 2017)

Nosso país nunca foi especialista em investimentos de Estado, estáveis, previsíveis e de médio e longo prazo, primando sempre pelo imediatismo e pela fleuma publicitária que permita colher frutos eleitorais a curto prazo. No caso da crise atual, tem se tratado cada vez mais de vender o almoço e o jantar para garantir um parco café da manhã no dia seguinte.

Os cortes, superficiais, mal planejados e que – na melhor das hipóteses – apenas tangenciam os problemas factuais de dispêndio de recursos, têm cada vez mais surtido o efeito de colocar nosso futuro em suspenso, limitando a capacidade de olharmos para além de dois ou três meses no futuro. O problema é que o desenvolvimento de um país não se realiza nessa escala temporal.

Sem investir em ciência e tecnologia, seguiremos exportando bens primários pouco trabalhados para importá-los mais à frente na cadeia produtiva, com alto valor agregado e custos exponencialmente maiores. A capacidade de constituir no Brasil as etapas de beneficiamento de produtos depende principalmente dos investimentos cujos cortes são, hoje, quase automáticos – um reflexo irrefletido.

Temos exemplos formidáveis de sucesso na área. Para ficar com os dois mais conhecidos, basta citar o impacto da Embrapa na produtividade e no sucesso mundial da agricultura brasileira e o impacto da Embraer em nossa indústria aeroviária – uma das mais competitivas do mundo. Ambos os casos são resultado de décadas de investimento sistemático e planejado, e tudo poderia ter ido por água abaixo se houvessem sofrido o tipo de corte em voga hoje.

A comunidade científica é unânime em reiterar – de maneira muito mais qualificada e exaustiva – os argumentos aqui expostos. Uma edição do programa “Roda Viva” da TV Cultura no início deste novembro exemplifica bem isso: uma mesa-redonda de mais de uma hora de duração, com cinco renomados cientistas – alguns dos quais exercendo funções administrativas – concordando em 90% com a análise um do outro. Consenso forte, embasado e raro na ciência.

Por que, então, essa resistência não se concretiza? Três hipóteses: a) há uma falha de comunicação entre comunidade científica e sociedade civil, passando por uma omissão dos veículos de comunicação; b) a população, por ignorância, desinteresse, alienação ou o que seja, não se interessa pela pauta e não está disposta a gastar suas forças nela; c) o governo está a realizar um projeto consciente de desmonte da infraestrutura do país, cujos objetivos imediatos são garantir lucro de curto prazo e proteger a casta dos privilegiados políticos, às custas de um projeto de nação desenvolvida.

As três, uma mistura delas, alguma, nenhuma. Pouco importam as causas, o fato é que assistimos, bestializados, à eutanásia da ciência brasileira e, com ela, ao aborto de um país potencialmente desenvolvido, independente e soberano. Que soe o réquiem.

Rafael Barros de Oliveira é graduado em Direito e Filosofia pela USP, mestrando em Filosofia pela mesma instituição e colunista do Terraço Econômico.
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