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É comum, entre os economistas, encontrar a afirmação de que a Economia é uma ciência que está dissociada dos valores. Entendem-na como a Física, ciência que estuda as forças da natureza que interagem com diversos elementos constituídos de matéria e energia. Nessa área de estudo, uma barra de ferro ao cair é um objeto material sofrendo o efeito de uma energia. Analisa-se o peso, a gravidade, a força do impacto no chão etc. É um mero fato que pode ser analisado sem um elemento moral.
A ciência física exclui a análise moral porque não considera a ação humana de forma ampla, mas apenas as forças naturais que estão presentes nela. Se há um ser humano na sua análise, a Física considera-o somente como ente material, o qual aplica e recebe forças.
Porém, isso é só um aspecto do fenômeno. Podemos questionar se a pessoa derrubou a barra por acidente, se ela a jogou no chão porque estava cansada, se ela jogou a barra talvez porque desejava atingir alguém, entre outras possibilidades. É possível ir além do fenômeno material presente na ação realizada, de modo que a análise das forças físicas explica apenas um pequeno recorte do respectivo comportamento humano.
Quando estamos falando de Economia, é quase impossível pensar em um fato isolado de decisões humanas. Não estamos tratando de forças autônomas da natureza, mas da atuação de seres que fazem escolhas. No entanto, o que muitas vezes não se considera nessa ciência é que as decisões humanas são morais e não são respostas automáticas de meros corpos materiais, entendidos como simples amontoados de células. As trocas não são feitas por inércia, de modo que um objeto não passa da mão de uma pessoa para a outra somente por conta da força aplicada sobre ele. Essa abordagem simplificada se dá até mesmo na visão de alguns economistas que advogam a ação humana como elemento principal da economia. Assim, esquece-se que a ação é precedida por uma decisão, que passa por um julgamento que se dá por conta de inúmeros elementos.
Não defendo aqui a ideia de que não se possa fazer uma abstração para entender alguns fenômenos, como movimentos nos preços e a oscilação da produção. Contudo, não explicamos a realidade se a análise se resumir só a abstrações. Quando se abusa disso para explicar os fenômenos econômicos, o mundo abstrato acaba por ocupar o espaço do mundo real. Portanto, o que temos como objeto não é mais a realidade como ela é, mas sim um esforço da imaginação que engloba alguns aspectos da realidade. Dessa forma, a ciência econômica se empobrece quando, de modo generalizante, tenta isolar a consequência da ação humana do processo mais amplo em que se dá a ação humana. Com essa abordagem limitada, ela acaba por se tornar uma ciência autorreferencial.
No entanto, é possível entender que os pressupostos dos quais parte a economia “pura” são também estabelecidos com base em moralidade e em uma visão de mundo. Para se usar o conceito de equilíbrio e de maximização na análise econômica, não se pode descartar que o equilíbrio se dá por interação de pessoas e que há elementos que as próprias pessoas desejam maximizar. Sem os propósitos que envolvem esses conceitos, o que resta é o ferramental matemático de que se utiliza.
Ao focar apenas em alguns elementos quantificáveis, em vez de a economia ganhar a precisão de uma engenharia, ela se torna uma caricatura de ciência natural. O fato de empregar matemática complexa sobre premissas simplistas, arbitrárias ou equivocadas não faz com que elas deixem de ser simplistas, arbitrárias ou equivocadas.
Quando se procura estudar dados numéricos e ver a relação de uns com outros, parte-se de uma motivação específica. Sem a interpretação desses números e o desejo de fazer algo com eles, a ciência econômica deixa de existir e vira mera estatística.
Da mesma forma, quando se expressa a ideia de “utilidade”, da satisfação das necessidades dos indivíduos, obviamente fala-se de uma decisão valorativa que está incutida em um emaranhado de outros elementos. Temos de ter em conta que “oferta” e “demanda” não são fatores que surgem da ordem espontânea do cosmos, mas são fatos que passam pelas escolhas de pessoas. Precisamos considerar que sempre que há uma decisão, e ela se dá com base em elementos valorativos. Em outras palavras, a ação humana é ação moral.
Outro aspecto a ser lembrado é que os indivíduos não vivem isolados e de forma independente. Em grau maior ou menor, as suas ações e decisões são interdependentes. Portanto, uma ação humana pode não ter cunho eleitoral, mas não deixa de ser uma ação política entendida no sentido aristotélico do termo. É um fato que o ser humano vive em sociedade e é influenciado por ela. Mesmo um Robinson Crusoé vivendo sozinho em uma ilha ainda carrega influencias do tempo em que vivia em sociedade. A não ser que a Economia se proponha a analisar apenas a vida de um Tarzan ou um Mogli (personagens que foram criados longe da sociedade), ela precisa considerar também os fatores socioculturais e as relações humanas que envolvem o fato e a decisão econômica. Assim sendo, a ideia de conceber a Economia como uma “ciência pura” é um mero empobrecimento de um campo do conhecimento que trata principalmente de relações humanas.
Isso nada mais é que uma ideologia fruto do positivismo que tenta enquadrar como “científico”, entendido como o critério para “verdadeiro”, uma metodologia que é aplicada a fenômenos específicos. A perspectiva ilustrativa da separação entre economia positiva (que expressa os fatos) e economia normativa (que faz prescrições valorativas), quando mal compreendida, serve como um argumento sofista para definir como “científica” uma visão de mundo específica, que explicaria a “economia como ela é”. Qualquer tentativa de usar uma abordagem mais abrangente de estudo, que inclua também os elementos valorativos e comunitários, passa a ser enquadrada na categoria de ciência “fraca”. Usa-se de um sofisma para varrer para baixo do tapete parte do problema com que se depara.
Contudo, esse cientificismo não é puro, mas parte de uma visão de mundo que contempla elementos morais. Usa-se de abstrações racionalistas para definir como científica uma única abordagem da Economia, uma visão antropológica específica: o "Homo economicus". Incute-se, assim, o hedonismo como padrão do comportamento humano, reforça-se o materialismo como perspectiva da realidade. Além disso, nessa perspectiva não se separa a Economia da moral, mas apenas consolida-se o autointeresse como a moral dominante.
Realmente existe a diferença entre fato e opinião, entre desejo e realidade. Achar que uma condição é certa não quer dizer que ela corresponde ao que é possível naquela situação. Porém, uma ciência que expressa fatos da realidade humana sempre estará emaranhada em meio a uma ordem moral e política.
Considerar isso não é pressupor qualquer bobagem dita em linguajar econômico como verdadeira, mas é assumir que uma ciência humana precisa considerar o ser humano como ele é e não de forma abstrata, existente só na imaginação do pensador. Tentar isolar o fato econômico e tratá-lo como um fenômeno “puro” é sempre uma forma de empobrecer a visão da realidade, pois o agir humano é muito mais complexo do que os fenômenos físicos da natureza. Algo que pode ser eficaz pedagogicamente pode ser insuficiente analiticamente. A readequação ao real sempre precisa ser feita.
O comportamento dos indivíduos está emaranhado de moralidade, incrustado de valores, de crenças, de visões de mundo, de influências culturais, de convenções, de hábitos, de estruturas legais e políticas. A ciência econômica está incutida e trabalha com valores morais e não só com valores quantitativos. Enquanto não entendermos isso, continuaremos buscando formular modelos econômicos “válidos em qualquer tempo em lugar”, mas cuja eficácia não sobrevive para além de uma década, estando adequados apenas a um punhado de nações com certas similaridades.
Gabriel Schühli é mestre em Economia e trabalha com elaboração de políticas públicas.