A discussão sobre o aborto é sempre envolta de emotivismos e opiniões subjetivas que se afastam de qualquer racionalidade, mesmo quando tratado por uma cientista renomada como Natalia Pasternak. Num artigo em O Globo, ela transpõe um conceito científico para a realidade social sem considerar as consequências: ela acha absurda a figura jurídica do "nascituro".
Eu já acho absurdo ela ser contra a pensão alimentícia das gestantes (Lei 11804/2008), ou ao direito à herança de quem ainda não nasceu (artigo 1.798 do Código Civil), consequências lógicas de se diferenciar a vida humana de pessoa jurídica, como ela pretende, num contrassenso que levaria, por exemplo, um pai achar-se no direito de negar a paternidade de um feto que, segundo a cientista Natalia, ainda é apenas um “zigoto que não tem como sobreviver fora do útero de uma mulher”. Se fosse permitido relativizar a humanidade de um feto dessa maneira, teria esse pai hipotético o direito de exigir que a mulher fizesse um aborto, considerando que ela carregaria no ventre apenas um amontoado de células indesejáveis?
Sigo vendo um contrassenso no fato de nossa legislação garantir ao nascituro, desde à concepção, os direitos de “pensão alimentícia” e de herança, enquanto os porta-vozes da ciência defendam que um feto, por ser indesejado, possa ter sua vida extinta.
O problema do cientista de laboratório é querer usurpar o objeto de outras ciências, no caso, a filosofia e a sociologia. Não podemos usar a microbiologia, especialidade da doutora Pasternak, para definir conceitos ontológicos nem realidades sociais. Ainda assim, até mesmo a nossa ilustre cientista é obrigada a admitir que, desde a concepção, um feto já tem uma sequência de DNA que o define como um ser único, individual – e, sobretudo, portador de direitos fundamentais garantidos pela nossa legislação vigente. A informação do genoma seria um critério objetivo e científico o bastante para definir quando a vida se inicia, mas a doutora Pasternak prefere recorrer a uma argumentação frágil, pressupondo uma analogia esdrúxula entre a concepção de uma nova vida e a morte cerebral.
No entanto, isso tudo são sutilezas desnecessárias, afinal, uma mãe não precisa de doutorado em microbiologia nem de conhecimento em citogenética para saber que o ser que se move no seu ventre é uma pessoa. Mas atualmente somos obrigados a empilhar toneladas de argumentos para provar aquilo que é de senso comum. Então, não custa lembrar que a partir da 14ª semana do período embrionário, um feto já tem as vias aferentes à medula espinhal desenvolvidas, simultaneamente com as respostas espinhais reflexas. Isso faz com que os neurobiólogos discutam a possibilidade da dor fetal, atestada por alguns estudos que detectaram respostas a estímulos dolorosos através do aumento de adrenalina, noradrenalina e cortisol, além da ocorrência de reflexos motores e alguns casos de manifestações do stress a partir da 16ª semana de gestação.
Mas é claro que ninguém pode questionar uma autoridade científica sem sofrer as consequências trágicas impostas pelo império do politicamente correto. Pouco importa argumentar no campo jurídico ou até mesmo se aventurar no âmbito científico, pois a resposta é sempre acompanhada de uma sentença condenatória sem julgamento de mérito: fanatismo religioso.
Indiferente a essas infaustas arbitrariedades, e representando os fanáticos e fundamentalistas religiosos de todo o mundo, sigo vendo um contrassenso no fato de nossa legislação garantir ao nascituro, desde à concepção, os direitos de “pensão alimentícia” e de herança, enquanto os porta-vozes da ciência defendam que um feto, por ser indesejado, possa ter sua vida extinta. A quem não enxerga nenhuma contradição, resta apenas relativizar o valor da vida e fazer contorcionismos argumentativos para classificar, de forma arbitrária, um nascituro como uma não-pessoa.
Diogo Chiuso é autor de “O que restou da política – ensaios sobre as desilusões ideológicas”, editora Noétika, 2022.
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