Há um ano, William Waack, então âncora do Jornal da Globo, anunciava a vitória de Donald Trump nas eleições americanas. Mas, nesse mesmo dia, foi flagrado, em vídeo divulgado recentemente, numa declaração de cunho racial nada virtuosa, que lhe causou o afastamento da emissora.
Momentos antes de entrar ao vivo, Waack, que estava com Paulo Sotero (diretor de uma instituição americana de estudos de geopolítica), mostra-se irritado com um som de buzina vindo da rua, diz alguns impropérios e arremata: “fazer isso é coisa de preto”. O curioso é que ele havia acabado de iniciar o jornal, dizendo: “O que vai fazer no emprego mais poderoso do mundo o homem que ganhou as eleições para presidente dos Estados Unidos xingando, mentindo e ameaçando?”.
Mas as palavras de Waack não fazem dele um racista. Eu diria assim: todo racista diz aquilo, mas nem todos que dizem aquilo são racistas. Esse tipo de estupidez está no imaginário brasileiro há mais de um século. E mais: não sem um fundo de verdade. Acompanhe meu raciocínio, caro leitor.
Após a proclamação da República, os republicanos sepultaram a esperança dos negros, lançando-os na mais absoluta marginalidade
No fim do século 19, o movimento abolicionista pedia o fim da escravidão sem indenização aos fazendeiros; os novos cidadãos livres é que seriam auxiliados. Para isso, André Rebouças escrevia sobre reforma agrária, e a princesa Isabel, principal aliada do movimento, coordenava um projeto de indenizações aos ex-escravos. Em carta reveladora ao Visconde de Santa Vitória (sócio do Barão de Mauá), agradece a intenção do banqueiro em colaborar com a causa.
O problema é que, um ano e seis meses após a assinatura da Lei Áurea, um golpe militar minou o projeto abolicionista. A família imperial foi expulsa do país e os republicanos sepultaram a esperança dos negros, lançando-os na mais absoluta marginalidade. Joaquim Nabuco, numa carta a Rebouças em 1893, disse: “Com que gente andamos metidos! Hoje estou convencido de que não havia uma parcela de amor do escravo, de desinteresse e de abnegação em três quartas partes dos que se diziam abolicionistas. [...] A prova é que fizeram esta República e depois dela só advogaram a causa dos bolsistas, dos ladrões da finança, piorando infinitamente a condição dos pobres. É certo que os negros estão morrendo e, pelo alcoolismo, se degradando ainda mais do que quando escravos, porque são hoje livres, isto é, responsáveis, e antes eram puras máquinas, cuja sorte Deus tinha posto em outras mãos (se Deus consentiu na escravidão)”.
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Demétrio Magnoli: Heraldo, a cor e a alma (1.º de março de 2012)
Em resposta, Rebouças também lamenta: “Ah, meu bom Nabuco, que erro irreparável foi desviar o Brasil da evolução democrática iniciada pela Abolição, para lançá-lo no redemoinho das revoluções incessantes e intermináveis”. Posteriormente, o sociólogo marxista Florestan Fernandes, mesmo atribuindo a condição do negro única e exclusivamente a fatores externos, diz que “muitos agiam como ‘desordeiros’, provocando repetidamente ‘forrobodós’ nos cortiços, pela madrugada, ou dentro de seus cômodos”.
Ou seja, associar “coisa de preto” à desordem reflete, infelizmente, a postura do próprio negro perante os desafios e impossibilidades que se impuseram no pós-abolição. Perpetuar essa mentalidade é um horror, mas não pior que perpetuar a “cultura de gueto”. E dizemos outras bobagens de mesmo quilate: judeu é avaro, português é burro, e assim por diante.
Como mudar isso? Não sei. Talvez deixando o sentimentalismo de lado e educando as novas gerações num ambiente de normalidade, não de militância.
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