Quem achou que Dorian fosse um nome bom para um furacão tem de se explicar. Nas Bahamas, quando temos de lidar com alguma dificuldade, tentamos fazer rir as pessoas que estão mais tristes, sabendo, ou pelo menos esperando, que elas retribuam o favor na hora em que mais necessitarmos.
Por isso, quando o furacão Dorian chegou às Ilhas Ábaco, alguns dias atrás, e as imagens terríveis começaram a correr as redes sociais, entre os primeiros vídeos compartilhados estava o de uma mulher que parecia estar correndo na chuva para se proteger, mas acabou tendo a peruca arrancada pela ventania.
Engraçado não foi vê-la sair voando, mas sim a mulher voltar para pegá-la, em vez de correr para se proteger, expandindo assim a lista de necessidades básicas. Muita gente pode ler isso achando totalmente inapropriada a trivialidade da situação, mas para os bahamenses o momento não poderia ser melhor.
O que temos visto nesses últimos dias é sublime em seu mais puro horror, e nos afasta do humor que nos ajuda a seguir adiante, apesar da fragilidade cada vez maior da vida nesse lugar de beleza incomparável que consideramos nosso lar. Embora ele tenha uma pegada de carbono minúscula, carrega o fardo de ser o marco zero da crise climática.
A tormenta atingiu duas das ilhas mais densamente povoadas do norte do país
Nós, bahamenses, ouvimos os negadores do aquecimento global em países ricos, alheios ou indiferentes àqueles que sofrem as consequências de sua vida maravilhosa – e, enquanto isso, a água invade nossos quintais porque o lençol freático sobe demais durante a maré alta, e as plantas das quais dependíamos já não crescem mais. Recebemos muito pouca chuva ou chuva demais, e os suprimentos de água doce se veem cada vez mais contaminados pelo aumento dos níveis do mar.
Vemos como os governos de países insulares diminutos como o nosso, presos a acordos internacionais, são forçados a tomar decisões que não são pelo melhor interesse do povo a que servem, enquanto nossa rede elétrica entra em colapso e somos forçados a depender dos combustíveis fósseis em vez de energia renovável. "Caro demais", dizem eles. "Para quem? O preço é o único fator levado em consideração?", respondemos.
Sentimos a luz do sol à nossa volta, mas somos impedidos de usá-la livre e legalmente para atender às nossas necessidades energéticas. Pode ser ilegal sair da rede elétrica oficial totalmente e assumir a autonomia da energia solar, mas quem sabe com que frequência o governo faz cumprir essa determinação? A energia dos painéis solares se torna um inimigo em vez de um recurso.
Vários meses atrás, a ONU divulgou um relatório contundente sobre o clima, que dizia que, a menos que se apliquem mudanças drásticas imediatas no mundo inteiro, lugares como as Bahamas serão os primeiros a ser engolidos pelo mar. Não houve discussão desse estudo apocalíptico no país, e nem um pio do primeiro-ministro, ainda que a análise tenha mencionado as Bahamas pelo nome.
Talvez seja pedir muito discutir a própria sentença de morte; ou talvez já soubéssemos. Afinal, há ocasiões como esta, quando furacões chamados Dorian – um nome permanentemente associado ao terror e ao que não perece – atingem com violência os lugares e as pessoas que amamos, dando uma amostra o que está por vir quando as águas não baixarem.
Está difícil buscar consolo no humor agora. Somos 700 ilhas ligadas a um arquipélago global de pequenas comunidades de bahamenses ao redor do mundo e uma das comunidades caribenhas mais diversas da região. Atualmente, vivo naquela que comumente é chamada de "a cidade caribenha mais setentrional de Miami". A tormenta atingiu duas das ilhas mais densamente povoadas do norte do país, a apenas algumas centenas de quilômetros daqui. De vez em quando, sinto lufadas de chuva e uma brisa forte, enquanto ouço relatos de ventos de 260, 300, 320 quilômetros por hora, e imagino se vai sobrar alguma coisa por lá.
E isso já não é mais incomum para os caribenhos. Compartilho as imagens com amigos de Porto Rico e muitos comentam: "Conheço esse som". É isso que significa estar intimamente ligado a alguém pelo terror? Há uma nova linguagem e uma estética nativas nas quais nos tornamos fluentes por tabela? Somos ilhéus. Para onde vamos? Vivemos em margens limitadas.
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- Mal estar na civilização (artigo de José Anacleto Abduch Santos, publicado em 1.º de setembro de 2019)
- Nossa alimentação está nos matando (artigo de Dariush Mozaffarian e Dan Glickman, publicado em 30 de agosto de 2019)
No segundo dia, as imagens perderam a intensidade. Já tínhamos visto postes de iluminação se partindo ao meio, rompendo os cabos, interrompendo a transmissão; o mar rompendo seus limites, unindo-se à água dos canais para reclamar a terra de volta; assistíramos a amigos registrando a água estranhamente marrom e cinza em suas varandas, sobre o teto dos carros, dentro de suas casas; compartilháramos imagens de famílias que tinham seguido todas as recomendações de preparação e, ainda assim, ficaram ilhadas, implorando resgate.
Tínhamos visto o interior das casas, onde os objetos boiavam na água a três metros de altura, e imagens surreais de tubarões e peixes enormes nadando na enxurrada, mesmo com a água continuando a subir, a 3,5 metros, depois 4 metros; testemunháramos telhados sendo arrancados como se fossem pedaços de papel, carros e barcos emborcados feito brinquedos; comemoráramos com aqueles que conseguiram nadar até um local seguro e choráramos pelos que tentaram e não conseguiram; víramos casas construídas para cinco pessoas se transformarem em refúgio para 50; mandáramos mensagens para os amigos e familiares para saber se estavam bem e nos sentíramos de mãos atadas.
Com a interrupção das linhas telefônicas e as baterias no fim, o fluxo de imagens parou. A comunicação foi interrompida de repente. A última mensagem que recebi de uma amiga foi às 3h45 da madrugada de segunda: "A tempestade é feroz, mas estamos aguentando firme". Nem uma palavra desde então.
Na quarta, pelo Facebook e pelo Instagram, aqueles que estão em outras ilhas e cidades que mal perceberam a passagem do Dorian começaram a postar fotos de familiares desaparecidos no silêncio das baterias mortas e serviços interrompidos. "Alguém os viu?" "Eles estão bem?" Belos rostos pipocando em todas as redes sociais. Não consegui ficar olhando muito tempo, tomada pela emoção e morta de medo de reconhecer alguém.
E então nos mobilizamos: pedimos a aprovação do Green New Deal nos Estados Unidos; fazemos doações para grupos como o HeadKnowles; pensamos em meios de reunir voluntários e profissionais bahamenses de saúde mental para o trabalho que virá nos próximos dias. Só que precisamos da ajuda e da gentileza de todos. Necessitamos de lonas, barracas, sacos de dormir, pilhas, lanternas, equipamento pesado, geradores, serras elétricas, eletricistas e gente capaz de recuperar as torres de comunicação e as casas. Precisamos de alimentos não perecíveis, fraldas, repelente.
Precisamos de muita coisa, mas, por favor, nada de papel-toalha usado. Não tem graça. Ainda que bem-humorados, os bahamenses certamente vão jogá-lo na sua cara.
Erica Moiah James é professora assistente do Departamento de Arte e História da Arte da Universidade de Miami. É a diretora fundadora e curadora da Galeria Nacional de Arte das Bahamas.
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