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| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Você já deve ter notado que vários produtos que compra no seu dia a dia vem com um preço sugerido “de fábrica”. Jornais, revistas, picolés, lanches em redes de fast-food e por aí vai. Políticas comerciais de sugestão e mesmo fixação de preços de revenda são muito comuns, e ocorrem em vários mercados. A discussão sobre os seus efeitos concorrenciais, no âmbito da teoria econômica e do direito antitruste, é de longa data. Há quem defenda que por vezes essa prática pode gerar ineficiências, tornando o mercado menos competitivo, e há quem defenda o contrário: que em muitos casos esse modelo é o que melhor se adequa àquele tipo de produto, gerando mais concorrência e benefícios ao consumidor.

Tanto um quanto o outro têm sua dose de razão, a depender do caso concreto. Seja como for, porém, mesmo os mais radicais dentre os estudiosos tendem a concordar que o ônus da prova para se considerar esse tipo de conduta como algo necessariamente ruim – ou, pior, ilegal – é alto. Em todo lugar do mundo, é certamente bastante raro que tal conduta seja considerada ilícita. Nas situações excepcionais em que se entende haver algum efeito anticompetitivo a ser sanado, o que envolve estudos econômicos precedentes extensos e cuidadosos, o resultado é a determinação de que a pessoa jurídica praticante realinhe certas práticas e, ocasionalmente, que pague alguma multa. Certamente, nenhum gerente de editoras de jornais ou de redes de lanchonetes vai para a cadeia por isso, e nem deveria. A análise é difícil, as conclusões são limítrofes e, portanto, sugerir ou fixar preços de revenda, que na maior parte das vezes não é nem sequer ilegal, muito menos é crime.

Sugerir ou fixar preços de revenda, que na maior parte das vezes não é nem sequer ilegal, muito menos é crime

Dias atrás, porém, autoridades criminais no estado do Paraná discordaram de tudo isso e, dispensando maiores avaliações econômicas ou concorrenciais, consideraram a matéria bem simples: há crime. Consideraram, também, que o procedimento e a sanção aplicáveis não são um processo com contraditório prévio e multa administrativa (o que seria a praxe), nem compromissos de ajustamento de conduta: é busca e apreensão e xadrez.

O setor afetado, no caso, foi o de distribuição de combustíveis. Sabe-se bem que cartéis (conduta bem diferente de fixação de preço de revenda) podem acontecer nesse mercado. E cartel, sim, é crime. Num cartel, as empresas, que deveriam estar concorrendo, combinam secretamente para deixar a rivalidade de lado, fixar um preço único mais alto ou dividir os clientes. É preto no branco, o efeito negativo no preço ao consumidor é evidente e as operações contra esse tipo de conduta são crescentes. Esta foi a primeira vez, contudo, que autoridades criminais brasileiras (e, possivelmente, de qualquer país com uma legislação concorrencial razoável) consideraram uma suposta fixação (sugestão?) de preços de revenda um crime, a ponto de pedirem a prisão de pessoas supostamente envolvidas.

Acontece que, justamente por se tratar de conduta corriqueira, normalmente não implicando efeitos anticoncorrenciais, o legislador propositadamente definiu que práticas como fixação de preço de revenda, acordos de exclusividade ou venda casada não são crimes. A Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência), que alterou a Lei 8.137/1990 (Lei dos Crimes contra a Ordem Econômica), restringiu a tipificação de crime apenas àquelas condutas mais graves, de identificação mais simples e evidentemente danosas em todos os casos: os acordos anticompetitivos, conhecidos como cartéis. Assim, qualquer discussão sobre fixação de preço de revenda é hoje matéria de análise no âmbito administrativo – nunca criminal. Tais casos são, portanto, investigados pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), autoridade antitruste brasileira, essa, sim, equipada para fazer as análises econômicas e concorrenciais complexas envolvidas em debates dessa natureza.

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O cartel é o único crime contra a ordem econômica previsto na legislação que pode resultar em sanções penais para pessoas físicas, porque nele o padrão de prova para condenação se resume à comprovação do acordo ilícito entre concorrentes. Ou seja, os efeitos anticompetitivos são pressupostos a partir da comprovação do acordo. No Brasil, não há previsão de que condutas que não sejam cartéis possam ser crime. Aliás, ao que se tem conhecimento, fixação de preço de revenda não é crime em lugar algum do mundo civilizado. No máximo, essas políticas comerciais podem configurar uma infração administrativa de pessoa jurídica, e somente após a análise de seus efeitos no mercado.

O precedente aberto é, portanto, inédito e muito perigoso. Como devem os comerciantes brasileiros, atuantes nos mais diferentes mercados, se portar quando práticas comerciais que nunca foram consideradas per se ilícitas passam, da noite para o dia, a ser consideradas não apenas ilícitas, mas crimes? Como irão as empresas se adaptar diante da perspectiva de ter seus funcionários presos por seguirem as orientações comerciais da pessoa jurídica, que por sua vez eram pautadas em uma prática que genuinamente se considerava não ser ilegal, dados a legislação e os precedentes até então?

Qual será a consequência de se proibir uma prática comercial que, no mais das vezes, é legítima e, muitas vezes, pró-competitiva ou mesmo necessária para o bom funcionamento de um mercado? Como evitar que gente inocente vá para a cadeia, se as autoridades criminais não estiverem equipadas (e dispostas) a realizar análises econômicas e concorrenciais adequadas? É esse mesmo o caminho que vamos trilhar?

Vinícius Marques de Carvalho, professor de Direito Comercial da USP, é ex-presidente do Cade. Eduardo Frade Rodrigues, mestre em Direito, é ex-superintendente-geral do Cade.
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