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Na esteira das iniciativas do Pacto Ecológico Europeu lançadas pela União Europeia para conter as mudanças climáticas e conservar os recursos naturais, o Reino Unido anuncia uma força-tarefa para implementar 14 ações prioritárias para conter o desmatamento ilegal em nível global. Com isso, visa contribuir para alcançar sua meta de neutralidade de emissões de CO2 até 2050. A principal ação é implementar um sistema de verificação para impedir a comercialização de commodities agrícolas provenientes de áreas de desflorestamento ilegal – as chamadas “forest risk commodities”.
A iniciativa deve ser interpretada tendo em vista o novo protagonismo que o Reino Unido pretende exercer externamente: efetivado o Brexit, o país volta a ser independente na definição de suas políticas públicas internas e a disputar influência global de temas como meio ambiente, segurança e comércio exterior.
O Reino Unido terá, já no curtíssimo prazo, duas oportunidades para essa diplomacia pós-Brexit: em maio de 2021, participará da Convenção da Diversidade Biológica (COP15), em Kunning, na China; e, em novembro do mesmo ano, será anfitrião da próxima conferência da ONU para a Convenção do Clima (COP26), na cidade de Glasgow.
Internamente, o pontapé para ações concretas foi dado: encontra-se em consulta pública uma proposta para obrigar que empresas adotem um sistema de controle de origem de produtos agrícolas que distribuem ou comercializam, sob pena de multa e sanções civis. A consulta é promovida pelo Departamento de Meio Ambiente, Alimentação e Assuntos Rurais (Defra, na sigla em inglês).
Faz parte da tradição política e jurídica britânica se apoiar na capacidade e liberdade privadas para implementar as ações necessárias, cabendo ao Estado definir e fiscalizar os padrões a serem observados. Precedente semelhante é a legislação sobre a cadeia de produtos madeireiros, que proíbe a colocação no mercado de produtos cuja origem seja de extração ilegal (o Forest Law Enforcement, Governance and Trade, Flegt).
A proposta em consulta pública tornaria ilegal a utilização, por empresas, de commodities agrícolas que não foram produzidas de acordo com a legislação do seu local. Para garantir a origem legal de tais commodities, as empresas seriam obrigadas a conduzir due diligences (ou seja, verificações conjuntas) junto aos seus fornecedores para garantir que o produto não seja proveniente de área de desmatamento ilegal. As commodities agrícolas alvo são aquelas que o Reino Unido mais consome: proteína animal, couro, cacau, óleo de palma, papel e celulose, madeira, borracha e soja.
Outra característica importante da legislação em estudo é a definição abrangente do que se entende por commodity agrícola, bastando que tenha sido colocada no mercado britânico pela empresa, quer o produto esteja in natura (grãos, carnes), quer incorporado a algum produto final (por exemplo óleos vegetais, estofados de couro em veículos, cosméticos, alimentos).
O Reino Unido sabe que essas commodities agrícolas fazem parte de cadeias globais de produção e que, para banir de seu mercado interno a chegada de produtos que tenham uma origem ilegal, precisará alcançar os países fornecedores.
Portais de grande audiência (The Independent, Bloomberg) e iniciativas especializadas (sites de monitoramento de produtos agrícolas) repercutiram a abrangência da iniciativa, chamando-a de uma repressão contra atividades ilegais em cadeias globais.
Em que pese a iniciativa britânica se tratar ainda de uma consulta inicial, reflexos possivelmente serão sentidos no Brasil e empresas terão de se adaptar para continuar integradas ao comércio internacional com o Reino Unido.
Ilustrativo desse desafio é o estudo recém-publicado na revista Science segundo o qual aproximadamente 20% das exportações brasileiras de proteína e soja são provenientes de áreas desmatadas ilegalmente.
As contribuições recebidas, no âmbito da consulta pública em andamento, irão influenciar a visão do Defra sobre o assunto; posteriormente, o órgão poderá propor uma legislação específica.
Embora ainda não se conheça as contribuições enviadas até aqui, algumas questões centrais podem ser antecipadas: o perfil das empresas obrigadas a conduzir as verificações, a periodicidade e forma com que as informações deverão ser prestadas, bem como seu grau de acesso público; delimitação da extensão das due diligences a serem conduzidas na cadeia; o rol de leis locais abrangidas; a adoção ou não de uma lista de produtos que têm commodities agrícolas incorporados; a definição de outras sanções civis a serem estabelecidas.
Encerrada a consulta pública, caso o governo decida prosseguir, uma proposta de lei será apresentada, estabelecendo as obrigações legais e quais empresas estarão obrigadas a atendê-las. Posteriormente, uma norma regulamentadora deve definir os detalhes necessários para a implementação da lei.
Em que pese os movimentos do Reino Unido e da União Europeia terem como pano de fundo as mudanças climáticas, um novo padrão de normas socioambientais está sendo definido para reformular o comércio internacional.
Outros países desenvolvidos podem acabar seguindo caminho semelhante, como Canadá, Japão e Coreia do Sul, cabendo ao Brasil retomar e repactuar com urgência a concepção de uma agenda propositiva de políticas públicas, sob pena de não voltar a participar e influenciar as esferas internacionais de negociação.
Lucas Mastellaro Baruzzi é advogado, cientista político, mestre em Direito e mestrando em Políticas Públicas pelo King's College London. Jeferson Manhaes é mestre em Relações Internacionais pela Sorbonne e mestrando em Ecoinovação pela Paris-Saclay. Thiago Munhoz Agostinho é advogado especialista em Direito Tributário e atua em temas regulatórios.