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O trabalho é a fonte social das riquezas, assim proclamaram os economistas clássicos nos albores da Revolução Industrial europeia. Longe de ela ter representado mera transformação econômica, implicou mudança cultural ainda mais significativa, pois consagrou a economia material como fator de evolução social e o trabalho como principal critério de utilidade coletiva. Verdade que o cristianismo jamais menosprezou o valor do trabalho; a labuta nas ordens monásticas, bem antes do surgimento do calvinismo, não deixa mentir. Porém, a partir da consolidação da fábrica como núcleo organizador da economia, a ideia de progresso, pela qual a Europa definiu a sua superioridade civilizatória no mundo, estaria intrinsecamente associada ao trabalho. Quanto mais complexo fosse o processo de trabalho, isto é, quanto maior fosse a sua divisão e a quantidade e a qualidade das funções econômicas existentes, mais avançada seria uma sociedade.
Até mesmo os críticos do industrialismo capitalista usaram a valorização do trabalho como arma de combate. O socialista Saint-Simon conclamava a refundação da ordem social para benefício das classes produtivas, proprietárias ou não. O anarquista Proudhon defendia um regime de pequenos proprietários diligentes, amantes da ordem e da liberdade fundadas no trabalho. O comunista Karl Marx elaborou toda uma filosofia da história na qual o futuro pertencia à classe trabalhadora, a única capaz de realizar as verdadeiras e genuínas aspirações da humanidade.
A ideia de progresso, pela qual a Europa definiu a sua superioridade civilizatória no mundo, estaria intrinsecamente associada ao trabalho.
O Estado-providência, surgido no final do século XIX, quer como resultado institucional das mobilizações proletárias, como na Inglaterra, quer como política de fortalecimento do poder central, como na Alemanha, mas em todo caso em contraposição ao laissez-faire até então vigente, atrelava a proteção social ao pertencimento ao mundo do trabalho. Os próprios trabalhadores contribuíram para que o trabalho se tornasse parte indissociável do moderno estatuto de cidadania.
No Brasil, porém, as coisas se passavam de modo diferente. Em um país de escravismo duradouro e de abandono dos homens livres e pobres, que constituíam parcela expressiva da população, poderia se esperar tudo, menos o prestígio do trabalho. Durante todo o século XIX, a organização institucional da economia brasileira esteve voltada para o favorecimento das oligarquias ociosas, encostadas em títulos nobiliárquicos e favores estatais pagos com a sangria de divisas e de recursos naturais para o exterior.
O afluxo de imigrantes europeus – latinos e católicos, em sua grande maioria –, assim como árabes e japoneses, dotados de visão capitalista moderna, criaria verdadeira cultura de trabalho no Brasil na virada do século XIX para o XX. Paulatinamente, o Brasil deixava de ser um país apenas de barões, escravos e desalentados, e se criava uma camada de operários e de empreendedores que aproveitavam as oportunidades vicejantes em um país colossal e parcamente povoado, apesar de todos os óbices econômicos do subdesenvolvimento.
O trabalho se tornou dever cívico, e o bom cidadão seria aquele que, independentemente da sua classe e origem, ocupasse alguma função econômica.
Apenas na Era Vargas, contudo, o trabalho foi consagrado como fator preponderante de organização nacional. O famoso bordão varguista “em defesa dos que trabalham e produzem” expressava o sentido de construção da nacionalidade a partir da valorização das atividades socialmente úteis. O trabalho se tornou dever cívico, e o bom cidadão seria aquele que, independentemente da sua classe e origem, ocupasse alguma função econômica que lhe permitisse sobreviver pelos seus próprios proventos e contribuir para o desenvolvimento nacional.
Erigiu-se todo um arcabouço institucional para marcar a nova era: proibiu-se tanto a usura quanto a mendicância, criaram-se leis de proteção ao trabalho, tanto do operário quanto do patrão, bem como organismos de fomento à iniciativa privada e de garantia do bem-estar dos trabalhadores. O trabalho foi consagrado na Constituição de 1937 como “dever social”, sendo os direitos sociais, da aposentadoria à saúde pública, condicionados ao registro do trabalhador no Ministério do Trabalho, a partir da Carteira de Trabalho, verdadeiro passaporte de cidadania.
Bastante significativo que a CLT tenha sido denominada Consolidação das Leis do Trabalho, no mesmo sentido da Justiça do Trabalho, outra inovação da Era Vargas. A opção pelo termo “trabalho” em vez de apenas “trabalhadores” se dava pela ideia de promover tudo que envolvesse trabalho, seja do lado dos empregados, seja dos patrões, ainda que a famosa chamada varguista “Trabalhadores do Brasil” se referisse a todos que trabalhassem, fossem ou não assalariados. Não haveria luta de classes entre quem trabalha e produz, mas solidariedade de funções, todas amparadas pelo Estado para servirem de esteio da construção do Brasil para os brasileiros.
O bom cidadão seria o trabalhador, aquele que labuta e come o pão adquirido com o suor do próprio rosto.
A revolução econômica de Vargas se fez acompanhar de verdadeira revolução cultural (felizmente não no sentido maoísta) para dar apoio psicossocial ao desenvolvimento que então se iniciava. O 1º de maio, então denominado Dia do Trabalho, justamente para confraternizar as distintas classes da economia real, tornou-se data cívica de primeira grandeza. A legalização do samba e a oficialização do carnaval tiveram como contrapartida a renegação da malandragem e a exaltação ao trabalho. O bom cidadão seria o trabalhador, aquele que labuta e come o pão adquirido com o suor do próprio rosto. Superava-se, definitivamente, aquilo que Joaquim Nabuco denominava “a obra da escravidão”, isto é, a desvalorização do trabalho nas suas mais diversas manifestações. Não seria exagero considerar o trabalhismo varguista um segundo abolicionismo.
O legado varguista, sobrevivente a duas mudanças de regime – a redemocratização de 1945 e o fechamento de 1964 – ajustou o Brasil, evidentemente sob condições idiossincráticas, ao paradigma do bem-estar social imperante em todo o mundo ocidental, fundado na centralidade do trabalho. O pleno emprego, tanto da força de trabalho quanto das forças de produção, foi o propósito intencional de todos os regimes econômicos – social-democratas, democratas-cristãos, social-liberais, fascistas, socialistas, trabalhistas etc. – vigentes desde a Crise de 1929 até o neoliberalismo das décadas de 1980 e 1990, quando mudanças internacionais transformaram drasticamente o sentido do trabalho.
Cada vez mais, os ganhos do assistencialismo suplantam os do trabalho formal, sem que estejam atrelados de alguma forma a esse.
Verificou-se, nesse período, a transição do industrialismo para o financismo enquanto característica central de organização socioeconômica. Não apenas os ativos financeiros se valorizaram em intensidade muito maior que os industriais, como a própria economia real passa a ser cada vez mais vinculada às movimentações especulativas em bolsas de valores e administrada conforme os critérios de valorização de títulos fictícios. A política, até então voltada para equilibrar institucionalmente os interesses em torno do trabalho, volta-se para a gestão mercadológica da economia e da sociedade, como se as nações fossem sociedades anônimas de capital aberto.
Não caberia aqui discutir em profundidade as razões para isso – recomendo, para tanto, o capítulo 4.1 do meu livro Desenvolvimento e Construção de Nações . O importante a se salientar é a desvalorização social do trabalho resultante dessa nova ordem.
O bolsa-banqueiro e o Bolsa Família são as duas faces da mesma moeda, sendo correlatos na essência e contíguos na história.
A lógica do financismo é o rentismo, isto é, a remuneração independente do trabalho, quer seja manual ou intelectual. A predominância do rentismo nos cumes do poder repercute no corpo dos países e modifica suas feições socioeconômicas e socioculturais. O rentismo se torna o princípio da acumulação de capital e, consequentemente, da política social. Da mesma forma que os mecanismos de acumulação se desvinculam da produção, também os de redistribuição. Se antes o pleno emprego e a seguridade social eram a contraface, no andar de baixo, do industrialismo no topo, a partir das décadas de 1980 e 1990, políticas assistencialistas se tornam o equivalente, para os pobres, do financismo no andar de cima. O bolsa-banqueiro e o Bolsa Família são as duas faces da mesma moeda, sendo correlatos na essência e contíguos na história.
Como em todo fenômeno sistêmico, ocorre uma complementaridade de processos: de um lado, a automação e a “flexibilização” das relações trabalhistas, voltadas a maior e mais célere valorização financeira do capital, promove volumosa dispensa da mão de obra, elevando estruturalmente o desemprego e aumentando a concorrência entre trabalhadores nos setores informais ou de pequena complexidade, o que, por sua vez, reduz os já diminutos ganhos nessas atividades e deixa significativa massa economicamente ativa de fora de qualquer oportunidade de ocupação vantajosa. De outro lado, os governos nacionais, cada vez mais limitados por forças e regras transnacionais em seu campo de atuação, resignam-se a preservar intactos os “mecanismos de mercado” tais como ditados pela plutocracia bancocrática e limitam-se a compensar os efeitos deletérios da financeirização por meio de políticas assistencialistas de “transferência direta de renda”, recomendadas pelos mesmos organismos transnacionais que regem a financeirização econômica, como o FMI e o Banco Mundial.
Cada vez mais, os ganhos do assistencialismo suplantam os do trabalho formal, sem que estejam atrelados de alguma forma a esse. Os governos não apenas chancelam a financeirização e a consequente desocupação da mão de obra, como ainda tornam os ganhos da desocupação iguais ou mesmo superiores aos do emprego, não apenas desincentivando-o, mas corroborando a sua desvalorização social. O trabalho, outrora visto como fator de construção nacional e de pertencimento social, é cada vez mais relegado como atividade indesejável, pelo menos para a ampla maioria alijada dos meios de se colocar nos estratos ocupacionais superiores, geralmente ultraespecializados.
O Brasil nas últimas três décadas é um exemplo notável de efetivação desse processo. A fim de “sepultar a Era Vargas” e criar um país “menos desigual”, destruiu-se, na verdade, as bases institucionais que permitiram ao Brasil ter sido o país de maior crescimento industrial no mundo entre 1930 e 1980, rendendo-o a comandos financistas externos. A privatização dos recursos naturais, das infraestruturas, das indústrias de base e do mercado cambial, o desmantelamento e a desnaturação das instituições desenvolvimentistas, a desregulamentação das finanças e do trabalho e as crescentes investidas judiciais de toda espécie contra as empresas nacionais levaram à desindustrialização massiva do país e à elevação gritante do desemprego e da informalidade. O tão propalado “pleno emprego” petista, de 4,3% de desemprego em 2014, perde sua exuberância se comparado com a média de desemprego no governo Sarney, cerne da “década perdida”, de cerca de 4%, e da década de 1970, de 2,5%.
O trabalho, outrora visto como fator de construção nacional e de pertencimento social, é cada vez mais relegado como atividade indesejável.
Concomitantemente, as políticas de “redução da pobreza”, entendidas pelo prisma unidimensional da renda per capita, caracterizaram-se pela transferência focalizada de renda, em consonância com o recomendado pelo FMI e pelo Banco Mundial, os mesmos que pressionaram por todas as medidas econômicas mencionadas no parágrafo anterior. O que de início, na década de 1990, com bolsas e auxílios tópicos, apresentava caráter emergencial e filantrópico, dentro do preceito de “quem tem fome tem pressa”, estruturou-se como plataforma de governo a partir da criação do Programa Bolsa Família, em 2004.
Desde então, esse tipo de política passou a ser apresentado pelo discurso oficial como um fim em si mesmo e como o carro-chefe da redistribuição de renda. O trabalho e o emprego, outrora vistos como meios exclusivos de mobilidade social, perderam espaço para o assistencialismo gratuito, da mesma forma que, no âmbito do capital, o investimento cedeu terreno para a especulação. No topo e na base da pirâmide social, o trabalhismo foi substituído pelo rentismo, e o sentido de construção da Nação substituído pelo de dissipação do que havia sido construído antes.
Vargas havia proibido a usura e a mendicância para valorizar o trabalho; os últimos governos valorizaram a usura e a mendicância para desincentivarem o trabalho.
Embora o lulopetismo tenha sido o primeiro a utilizar ostensivamente o assistencialismo como cerne da política social, ele não foi o único a desvincular a proteção social do trabalho. O governo Bolsonaro, além de mudar o nome do Bolsa Família para Auxílio Brasil, visando dar uma imagem mais “patriótica” ao programa, ainda o ampliou para o significativo valor de R$600 após a pandemia e esticou a sua cobertura às vésperas do pleito presidencial de 2022, buscando obter dividendos eleitorais com isso. O presidente eleito Lula, por sua vez, não hesitou em reverter o nome para Bolsa Família e acrescentar um adicional por filho que chega aos R$600, de modo que se pode atingir praticamente o valor de um salário mínimo apenas em auxílio governamental federal, sem contar os auxílios locais. Cria-se verdadeiro rentismo dos pobres, coevo do rentismo dos ricos.
Não é de surpreender nenhuma vivalma que a quantidade de beneficiários de Bolsa Família seja mais da metade que a de trabalhadores formais, e que tenha crescido sobremaneira a partir de novembro de 2021, em pleno governo Bolsonaro. Em um país onde reina o desalento, sem perspectiva de geração de empregos e no qual até a informalidade encontra dificuldades, a equiparação dos auxílios governamentais ao salário mínimo torna o trabalho desvantajoso. Vargas havia proibido a usura e a mendicância para valorizar o trabalho; os últimos governos valorizaram a usura e a mendicância para desincentivarem o trabalho.
Opera-se, assim, a desconstrução da cidadania e da Nação, pois, como afirmo no meu recém-publicado livro Nacionalismo Brasileiro: Fundamentos, Intérpretes e História, “o emprego, a propriedade, a previdência e a associação criam vínculos materiais, institucionais e afetivos entre o indivíduo e a sociedade, fortalecendo os laços de cidadania e de patriotismo. Ao contrário, o desemprego, o despojamento e a informalidade favorecem a atomização e o individualismo, criando relações alheias ao sentido de nacionalidade, nas quais os únicos meios possíveis de interação com o Estado são pela violência (revoltas, criminalidade, repressão policial etc.) ou pela dependência de auxílios que criam direitos sem contrapartidas, que com o tempo se tornam privilégios, desestimulando a diligência.”
Desse modo, o Brasil apresenta-se como vanguarda do Great Reset, projeto do Fórum Econômico Mundial epitomizado no lema “você não terá nada e será feliz”. Resta saber que Brasil queremos: o do Fórum Econômico Mundial, um ex-país transnacionalizado, saqueado por dirigentes apátridas a serviço de interesses forâneos e que mantêm bovinizada a massa ociosa pela caridade oficial, ou o Brasil brasileiro, onde cada indivíduo pode encontrar sua função social e construir sua própria vida a partir do seu próprio esforço e do próprio mérito. Se quisermos o primeiro caso, basta prosseguirmos no caminho rentista em que estamos há três décadas; se quisermos o segundo, retomemos, de forma atualizada e aprimorada, o nacionalismo e o soberanismo trabalhistas que a Era Vargas nos legou.
Felipe Quintas é doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense, autor dos livros "Desenvolvimento e construção de nações" (2022) e "Nacionalismo Brasileiro: Fundamentos, Intérpretes e História" (2023), além de possuir o canal Brasil Independente no Youtube.