Os efeitos econômicos que a guerra imposta pela Rússia sobre a Ucrânia causam no mundo, principalmente nos mercados financeiros e no mercado de commodities, são notórios quando acompanhamos o dia a dia das empresas e das famílias brasileiras. É importante lembrar que toda grande mudança econômica, principalmente as ocasionadas por guerras, gera efeitos que alteram fundamentalmente algumas características das sociedades. A primeira e mais perceptível foi o fato de que as nações, hoje, principalmente as europeias, passaram a considerar a segurança nacional sua principal prioridade, acima inclusive do seu crescimento econômico. Tais ações nos remetem a um novo momento de Guerra-Fria 2.0, o que de fato tem uma abrangência macroeconômica que projeta seus efeitos em todo o planeta, incluindo o Brasil.
O que agora começamos a enxergar são os efeitos microeconômicos, os quais afetam nosso cotidiano e podem potencialmente alterar o funcionamento de nossa sociedade e como nos relacionamos uns com os outros, devido às alterações econômicas causadas pela guerra, e principalmente como isso impacta nossa renda e nosso dia a dia. É importante lembrarmos que vivemos uma espécie de terceiro choque sobre o petróleo, pois a realização das sanções econômicas à Rússia, um dos maiores produtores de energia do planeta, de fato impactam o mercado de petróleo, do gás natural e de outros derivados que fazem com que os postos de gasolina se transformem indiretamente em vilões para os consumidores que veem aumento dos preços todos os meses. No último dia 5 de maio, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) chegou a encontrar o valor de R$ 8,999 por litro de gasolina em Tubarão (SC).
Esses aumentos começaram a afetar não apenas o custo das empresas e a vida das famílias, mas hoje interferem até mesmo a interpretação jurídica e o mercado de trabalho. A 1ª Vara Federal de Jaraguá do Sul (SC), por exemplo, concedeu decisão liminar a um posto de gasolina para que ele possa operar em sistema de self-service, como ocorre em grande parte da Europa e dos Estados Unidos; ou seja, o cliente mesmo paga e coloca gasolina no seu veículo, o que mostra ser uma operação extremamente simples. O problema é que no Brasil existe a Lei 9.956/2000, que, pasmem, proíbe expressamente a existência do sistema self-service em postos de gasolina com o único objetivo de “proteger” os postos de trabalho dos frentistas.
Essa lei é tão retrógrada que caso fosse aplicada em todas as profissões com o objetivo de “proteger” os empregos, ainda teríamos datilógrafos, ascensoristas de elevador e outras profissões que foram extintas não pela maldade de alguém, mas sim pela evolução tecnológica e pelo surgimento de novas profissões e mercados que diariamente se expandem. Se antigamente tínhamos laboratórios para revelação de filmes, hoje temos editores de imagens digitais. O que mudou foi a capacidade de qualificação, a educação e a evolução dos serviços e produtos. Será que teria sentido hoje existirem funcionários públicos para acender as lamparinas públicas?
O que é questionável do ponto de vista jurídico é como um juiz concede uma liminar que vai contra uma lei aprovada no Congresso Nacional de maneira tão direta. Se estivéssemos vivendo em um mundo pré-pandemia e pré-guerra talvez essa liminar não fosse deferida.
Entretanto, o juiz citou a inovação, a Lei de Liberdade Econômica e o fato de que o Estado não deve se intrometer em aspectos de inovação dos empreendedores e da sociedade. Há, de fato, uma base teórica bastante sólida com isso, porém esse é um daqueles momentos no qual leis brasileiras se tornam conflitantes e devem terminar nos tribunais superiores. O meu ponto de vista nesta análise é que a pressão econômica infligida ao setor de combustíveis, ocasionado principalmente pela guerra da Ucrânia, ao gerar dificuldades em vários setores econômicos e na vida das pessoas, passa a influenciar também em decisões judiciais, e isso já altera a base de como empreendimentos comerciais funcionam, contratam e operam. Não há dúvidas de que esse debate poderá em breve avançar para o Congresso, e essa lei pode ser revogada ou alterada em qualquer momento. Como estamos no Brasil, a lei pode ser julgada inconstitucional 22 anos depois de sua promulgação ou alterada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
A guerra trouxe à tona vários desdobramentos econômicos e sociais que talvez demorassem mais 20 anos para ser debatidos, ou melhor, confrontados com uma realidade que se modifica, evolui e se altera. Apesar de que sempre existirão forças tentando manter o status quo, o capitalismo é uma força latente que se entrelaça, altera, une e principalmente se aprimora. Todavia, sempre há o mesmo questionamento há 20 anos: e os empregos dos aproximadamente 500 mil frentistas nos mais de 42 mil postos de gasolina espalhados pelo Brasil? Vamos deixá-los sem emprego? Não serei insensível a ponto de desprezar esse problema, contudo ele precisa ser enfrentado e planejado agora para que esses trabalhadores não fiquem desamparados do dia para a noite.
Já tivemos duas décadas para pensar nisso, mas infelizmente isso foi e continua sendo ignorado. Pois bem, o Estado, os sindicatos e as associações precisam ver uma forma para requalificar esses frentistas para que eles possam trabalhar em outros serviços, pois isso aconteceu em vários países do mundo. O outro lado da balança é que, neste momento de alta nos preços, com a implantação do sistema self-service nos postos de combustíveis, o preço final ao consumidor poderia reduzir de 10 até 15 centavos por litro, e hoje esse efeito seria bilionário para toda a sociedade levando em consideração custos de produção, inflação e poder de compra.
O cenário que se nos apresenta é uma distorção de tudo que existe do ponto de vista de produção econômica no Brasil, pois o custo de empregabilidade é altíssimo, com encargos trabalhistas pesados que desestimulam as contratações com um modelo de cálculo de passivo sobre os empregados que torna contratar e demitir um custo muitas vezes inviável estimulando a empregabilidade informal. Atrelada a isso, existe uma regulação fortíssima sobre setores específicos que desestimulam a inovação e a expansão das atividades comerciais. Apesar de todos esses fatores negativos, a guerra hoje em evidência e os choques econômicos internacionais são forças tão avassaladoras que seus efeitos são assimilados sob os aspectos micro e macroeconômico; no Brasil, isso não será exceção.
Precisamos que o tempo do judiciário e do legislativo brasileiro seja mais alinhado com o tempo da evolução dos mercados, das crises econômicas e do desenvolvimento econômico; caso contrário, acabaremos vivenciando uma realidade ilógica, o que será prejudicial para toda a sociedade. Hoje, a guerra na Ucrânia se tornou a maior inimiga dos nossos frentistas brasileiros.
Igor Macedo de Lucena é economista e empresário, doutorando em Relações Internacionais na Universidade de Lisboa, membro da Chatham House – The Royal Institute of International Affairs e da Associação Portuguesa de Ciência Política.
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