Nas últimas semanas, assistimos a uma profusão de notícias a respeito de investimentos milionários em startups que prometem desde criar hambúrgueres vegetais (o que, a rigor, não é nenhuma novidade, ainda que a tecnologia prometa que a experiência seja cada vez melhor para o consumidor) até nuggets de frango feitos a partir de células em laboratório, como a Just; ou peixe feito também a partir de culturas de células, como é o caso da Finless.
Voltemos um pouco no tempo. Jorge Paulo Lemann e seus colegas do 3G tornaram-se bilionários ao investir em setores maduros, com poucas mudanças (ao contrário, por exemplo, da área de tecnologia), visando adquirir marcas fortes produzidas por empresas com gaps claros de gestão. Arrumando a casa, a receita de sucesso estava garantida. O resto já estava feito e pouco mudaria dali para a frente.
Esse mundo está se transformando. E rapidamente. Do lado do consumidor, a descrença nas grandes marcas tem favorecido que novas entrantes, com narrativas e posicionamentos mais alinhados ao consumidor mais jovem, ganhem espaço. Uma pesquisa da McKinsey mostrou que os millenials (nascidos entre 1980 e 2000) são 2,8 vezes mais propensos a comprar novas marcas e 3,7 vezes mais propensos a evitar as grandes empresas (as chamadas CPGs, ou consumer packed goods).
Ao mesmo tempo que as chamadas “frankenfoods” crescem, também se desenvolvem os produtos artesanais, tradicionais, feitos localmente
Assim, investir em grandes marcas e arrumar a casa não é mais garantia de sucesso. Jay Waldvogel, vice-presidente da Dairy Farmers of America, maior cooperativa de captação de leite dos Estados Unidos, disse em 2018 que, para ser grande, hoje é necessário estar presente em diversos pequenos mercados. É a ditadura do nicho, que se contrapõe ao cenário anterior de produtos globais destinados ao mercado de massa.
Mas as mudanças vão além. Até então, uma máxima garantia que os produtores, indústrias e prestadores de serviços atuantes na produção de proteínas animais teriam futuro garantido: “por mais que o mundo mude, as pessoas precisarão comer”. Se a tecnologia que vende música mudar radicalmente, não é problema para eles. Se a indústria do transporte se transformar completamente, idem. O fato é que teremos 9,6 bilhões de pessoas para alimentar em 2050, em um processo de urbanização e aumento da renda média, o que certamente demandará mais proteínas animais.
Que as pessoas precisarão comer, disso não resta dúvida. Mas os exemplos que abriram esse artigo nos fazem refletir: até que ponto os alimentos de laboratórios (ou vegetais turbinados) roubarão parte do mercado prometido para as proteínas animais convencionais? Estudo do Banco Barclays aponta que as carnes artificiais (vegetais ou animais) terão 10% de mercado até 2030, o equivalente a US$ 140 bilhões ao ano. É uma enormidade, mas 90% do mercado ainda será convencional.
Mas e se a mudança for mais rápida? Um artigo assustador (e um tanto sensacionalista) publicado no Food Navigator prevê que até 2030 a indústria de lácteos e de carnes dos Estados Unidos terá colapsado, na medida em que fábricas de proteína microbiana se desenvolvem. A previsão é do think tank RethinkX, cujos críticos dizem que vive em uma “fantasia vegana”.
Mas as mudanças, de qualquer forma, ocorrem e não convém ignorá-las. No caso do leite, já há exemplos de produtos de laboratório, além, claro, dos “leites” de amêndoa, coco e afins, que prometem entregar uma experiência compatível com o leite tradicional, sem obviamente envolver a exploração de animais, aí entrando o discurso da ética, meio ambiente e efeitos na saúde. O exemplo mais evidente hoje é a NotCo, startup chilena investida por Jeff Bezos, da Amazon, que, por meio de um algoritmo matemático apelidado de Giuseppe, pretende combinar moléculas e produzir um similar ao leite. A NotCo, que já está no Brasil, é, afinal, uma empresa de alimentos ou de informática? A pergunta faz sentido porque um dos paradoxos desta mudança tecnológica é que o concorrente não é mais quem costumava ser. A Tesla, por exemplo, é muito mais uma empresa de software que de carros, à medida que a proposta de valor gerada pela experiência depende cada vez mais do software.
- O Brasil e a nobre missão de alimentar o mundo (artigo de Stefan Mihailov, publicado em 2 de janeiro de 2019)
- Barreiras à importação, um velho debate econômico (artigo de Lucas G. Freire, publicado em 14 de fevereiro de 2019)
- Abertura do mercado exigirá melhor gestão por parte dos produtores de leite (artigo de Heloise Duarte, publicado em 6 de agosto de 2019)
A mudança tecnológica permite que novas soluções sejam geradas para dores antigas, reinventando setores inteiros, mesmo aqueles aparentemente pouco suscetíveis a mudanças. Vejamos, por exemplo, o segmento de cercas de arames para animais. O que ocorrerá com ele caso as soluções utilizando GPS e sensores nos animais se disseminem, como é o caso da Agersens, de cercas virtuais? Assim, as empresas do setor lácteo, por exemplo, devem começar a pensar que seus concorrentes não serão mais apenas aquelas empresas que se parecem com elas, mas também empresas insurgentes que emergem de áreas como a inteligência artificial.
É bem provável que a mudança não seja tão rápida assim. É comum a mídia fazer enorme barulho e, no frigir dos ovos (produzidos por galinhas!), o ritmo de mudança é mais lento. Também há inúmeras oportunidades de diferenciação e crescimento no mercado de proteínas animais convencionais. O mundo atual, afinal, é um mundo cada vez mais de nichos. Ao mesmo tempo que as chamadas “frankenfoods” crescem, também se desenvolvem os produtos artesanais, tradicionais, feitos localmente. O natural e o real sempre terão apelo especial.
Marcelo Pereira de Carvalho é fundador e CEO da AgriPoint e realizador do Dairy Vision.
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