O tema é antigo e avança devagar. Todos – ou quase – são a favor da aproximação entre universidades públicas e a iniciativa privada. Mas na hora dos detalhes tudo fica travado – seja pela regulamentação federal, seja pelo patrulhamento criado no seio das próprias instituições. O Future-se, programa anunciado pelo Ministério da Educação, abre novas perspectivas? Vamos por partes.
A aproximação entre universidades públicas e iniciativa privada se justifica sobretudo nas áreas de ciência e tecnologia – particularmente no que diz respeito à possibilidade de obtenção de recursos. Não abordamos aqui a questão da gestão do patrimônio imobiliário dessas instituições. Consequentemente, o tema se limita a um pequeno conjunto de instituições e, dentro delas, a um pequeno número de departamentos que se distinguem em alguma área científica. Esse espaço vem se tornando cada vez menor com a globalização – nenhum empresário e muito menos empresas de ponta perderão tempo com instituições que estejam aquém do estado da arte. Fora disso, há espaço para nichos muito específicos de instituições locais especializadas em assuntos de interesse local. Ou seja: o espaço para cooperação é limitado e restrito, é coisa para poucos. Mas ele é pulverizado, pode ocorrer em grandes instituições, em departamentos especializados dentro delas, mas também pode ocorrer em pequenos nichos.
A cooperação com o setor privado é movida, de um lado, pela necessidade de resolver problemas quase sempre prementes; e, de outro, pela expectativa de receber uma resposta – ou solução – em tempo razoável. A existência de mecanismos ágeis de contratação e negociação entre empresas e universidades públicas certamente seria um atrativo para o setor privado.
A motivação e as ideias gerais contidas no documento apresentado pelo Ministério da Educação parecem saudáveis
Ademais, incentivos para professores e pesquisadores explorarem suas próprias patentes e mesmo auferir parte dos lucros poderia estimular uma mentalidade mais empreendedora, e que também poderá contribuir para forçar um movimento de saída da universidade em busca de parceiros privados para viabilizar os seus negócios.
A pergunta é: que tipo de política seria mais adequada para promover esses objetivos? Essas políticas estariam contempladas na proposta do Future-se?
É muito cedo para falar no Future-se, pois as informações divulgadas são muito limitadas. Estamos na época do “power point”, com pouca ênfase na clareza e profundidade. As análises do que já foi divulgado, especialmente as observações do professor Simon Schwartzman, sugerem que aparentemente não há muita novidade: tenta-se recriar, na forma de organizações sociais (OSs), o que não deu certo na forma das fundações atuais. Se for isso, não é de se esperar grandes mudanças. Mesmo porque os problemas – inclusive os problemas que geram dificuldades financeiras – são muito mais profundos. Mesmo os problemas financeiros são muito mais vultosos do que eventuais parcerias poderiam aliviar.
O ensino superior público brasileiro é amarrado por três camisas de força. A primeira é a ideia de “indissolubilidade” entre ensino, pesquisa e extensão. Isso gera um modelo institucional de ensino superior rígido, caro e inadequado. Este modelo precisa ser desmontado para o país avançar. A segunda são as regras de governança, gestão e “produtividade acadêmica” que levam a desatinos como o fato de, hoje, as universidades públicas gastarem 90% de seus recursos com pessoal: não há incentivos para a eficiência, muito menos existem meios para buscá-la diante das amarras da legislação. E com isso sofre a qualidade, especialmente na pesquisa. A terceira é o próprio modelo de ensino superior, voltado para uma concepção de profissão que talvez tenha sido adequada em meados do século 19, mas que se tornou cara e disfuncional. Essa disfuncionalidade é ampliada pelos requisitos formais relacionados a “disciplinas obrigatórias”, criados de fora e de dentro das instituições, quase sempre a serviço de interesses corporativos. Os países desenvolvidos – especialmente da Europa – já evoluíram muito nesse terreno e o chamado “processo de Bolonha” é algo que o Brasil precisa conhecer e começar a debater. Nada disso, parece-me, está contemplado na proposta do Future-se.
VEJA TAMBÉM:
- Inovação no setor público? (artigo de Marcos de Lacerda Pessoa, publicado em 14 de janeiro de 2018)
- A angústia da inovação (artigo de Paulo Bettio, publicado em 27 de fevereiro de 2019)
- Future-se: proposta inovadora ou mais uma nuvem de fumaça? (artigo de Cesar Silva, publicado em 30 de julho de 2019)
O que é preciso fazer? O parágrafo anterior contém um esboço do caminho a ser traçado – com uma ambiciosa agenda que contemplasse esses três vetores. É preciso rever a legislação, acabar com o conceito de indissolubilidade e estimular a criação de diferentes modelos institucionais para o ensino superior em geral, inclusive o público. Há espaço para algumas poucas instituições ou braços de instituições de excelência em pesquisa, mas certamente essa não deveria ser a característica comum a todas. É preciso acabar com a “pesquisa faz de conta”, que infelizmente constitui a grande parte do que se faz nessas instituições. E deveria haver espaço para instituições especializadas em pesquisa e/ou tecnologias, com menor ambição na área de ensino, livres das amarras da “indissociabilidade”.
Isso feito, seria necessário criar novas formas organizacionais que permitissem o exercício da verdadeira autonomia universitária – acadêmica, administrativo-financeira e de pessoal, devidamente acompanhada de mecanismos adequados de responsabilização. Há modelos em vários países do mundo a serem examinados; não é preciso reinventar a roda. Criar fundações ou OSs é reconhecer o engessamento existente, mas não resolve a principal fonte de recurso, que viria da eficiência no uso dos recursos atuais. Na área da gestão dos hospitais parece que há ideias interessantes a aprofundar.
E também caberia, como já sugerido acima, enfrentar a questão da desregulamentação da maioria das profissões e estimular o surgimento de um novo modelo de ensino superior, mais adequado aos mercados de trabalho do século 21 e mais semelhante ao que vem se promovendo nos países mais avançados.
Será que vamos avançar? A motivação e as ideias gerais contidas no documento apresentado pelo Ministério da Educação parecem saudáveis. Mas o diabo, como sempre, mora nos detalhes. Para que essas ideias – ainda que limitadas – pudessem frutificar, seria necessário criar um espaço estimulante de um verdadeiro debate, um confronto de ideias, um aprofundamento de diferentes pontos de vista. O mecanismo de audiências públicas e de consultas públicas não permite que nada disso aconteça. Não se trata de obter unanimidades ou consensos. Trata-se de aprimorar ideias, torná-las claras e trabalhar pelo convencimento. Sem isso é pouco provável que teremos avanços significativos. E, pelo que parece, o Brasil perdeu o hábito – e o gosto – de conversar.
João Batista Araujo e Oliveira, doutor em educação, é presidente do Instituto Alfa e Beto e especialista do Instituto Millenium.