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Artigo

Como arruinamos a infância das nossas crianças

(Foto: Theo Tavares/Thapcom)

Segundo o psicólogo Peter Gray, as crianças hoje em dia estão mais deprimidas que durante a Crise de 1929 e mais ansiosas que no auge da Guerra Fria. Um estudo publicado este ano no Journal of Abnormal Psychology concluiu que entre 2009 e 2017 os níveis da doença cresceram mais de 60% entre os jovens com idades entre 14 e 17 anos, e 47% entre os de 12 a 13. E não é só uma questão de aumento de diagnóstico; o número de crianças e adolescentes que chegam ao pronto atendimento com pensamentos suicidas ou como vítimas de tentativas frustradas dobraram entre 2007 e 2015.

Resumindo: nossas crianças não estão bem.

Como mãe e escritora, durante muito tempo andei atrás de um único culpado. Era o excesso de tempo de tela? A alimentação? A falta de ar fresco e tempo livre, a frequência cada vez maior da criança superatarefada e superprotegida, da cultura massacrante da ansiedade e do medo?

Tudo isso pode contribuir, mas cheguei à conclusão de que os problemas mentais e emocionais não são causados por um único fator, e sim por uma mudança fundamental na forma como encaramos os jovens e a criação dos filhos, e pela maneira como ela transformou nossas escolas, nossos bairros e nossas relações uns com os outros e com as comunidades.

A criação dos filhos, antes considerada um trabalho socialmente necessário pelo benefício do bem comum, só não é uma tarefa solitária para os mais abastados; dos pais depende totalmente o bem-estar de sua prole, e de ninguém mais. Muitos inclusive têm de priorizar a segurança física e a supervisão adulta em troca do desenvolvimento emocional e social sadio. Quando a paternidade é privatizada e a infância, institucionalizada, claro que as crianças sofrem.

Quando a paternidade é privatizada e a infância, institucionalizada, claro que as crianças sofrem

Sem poder contar com estruturas comunitárias para o cuidado infantil nem permitir que os filhos fiquem sozinhos, os pais que têm de trabalhar fora são forçados a “engavetá-los” por longos períodos; por isso, o dia letivo passou a ser mais longo e mais cheio de regras. A pré-escola, que antes se concentrava em brincadeiras, hoje é espaço de treinamento acadêmico para o primeiro ano. Os pequeninos já recebem tarefa para casa, mesmo com inúmeros estudos apontando para os prejuízos que isso causa. O Stem (metodologia focada em Ciência, Tecnologia, Engenharias e Matemática, na sigla em inglês), as provas padronizadas e as simulações em caso de tiroteio substituíram o recreio, os almoços sem pressa, a arte e a música.

O papel do estresse escolar no dano psicológico é comprovado pelos números do período em que o suicídio infantil é cometido. “Ele dobra durante os meses letivos em relação aos períodos de férias, e isso vale para as ideias, as tentativas e os suicídios levados a termo; já entre os adultos, os níveis aumentam no verão”, explica o dr. Gray.

No entanto, os problemas que acometem a saúde mental e emocional das crianças não são causados apenas pelo que acontece na sala de aula; eles refletem o que está acontecendo em nossas comunidades. Com a falta de recursos de todos os tipos, incluindo – mas sem se limitar a eles – os serviços de saúde mental, assistência médica, moradia acessível e educação superior, muitos pais estão tendo de trabalhar mais do que nunca. E, ao mesmo tempo que se exige muito mais deles, o tempo livre e as atividades autônomas para as crianças se tornaram tabu.

Assim, para muitas delas, nem faz diferença quando o dia escolar acaba, porque as horas fora da escola são tão cheias de atividades quanto durante o horário letivo, ou até mais; as crianças passam as tardes, os fins de semana e as férias de verão em creches e acampamentos enquanto os pais trabalham. Os locais públicos onde antes se reuniam para brincar, sem regras e sem supervisão, agora lhes são interditados. Quem tem condição financeira para bancá-los dá uma de motorista, levando as crianças de uma atividade estruturada para a outra; quem não tem deixa os pequenos trancados em casa. A brincadeira livre e a independência infantil se tornaram relíquias, riscos passíveis de seguro, às vezes até violações criminais.

Tali Raviv, diretora associada do Centro pela Resiliência Infantil, diz que muitas crianças hoje sofrem de um déficit de competências sociais. “Elas têm menos oportunidades de praticar essas habilidades socioemocionais, seja por viverem em comunidades violentas, impedidas de sair, seja por superproteção, e, nesse caso, não têm independência nem para ir ao mercadinho da esquina. Não sabem como começar uma amizade, um relacionamento, o que fazer quando alguém as incomoda, como resolver um problema”, informa.

Muitos pais e pediatras questionam o papel que o tempo de tela e as redes sociais podem ter nesse déficit social, mas é importante reconhecer que simplesmente acabar com a regalia ou diminuir o tempo de uso não basta. A criança se volta para as telas porque as oportunidades de interação humana na vida real desapareceram; os locais públicos e espaços onde os jovens aprendiam a ser gente sumiram ou passaram a ser considerados perigosos demais para menores de 18 anos.

Assim, o núcleo familiar de muitos norte-americanos se tornou uma instituição solitária, e a infância, um estágio longo e não remunerado com o objetivo único de garantir um espaço em uma classe média que só faz encolher.

“Algo tem de mudar. As crianças precisam de recreio, de mais tempo para o almoço, de brincadeira livre de regras, de tempo em família, de refeições em família. Precisam de menos lição de casa, menos provas e mais ênfase no aprendizado socioemocional”, argumenta Denise Pope, uma das fundadoras da Challenge Success, organização sediada em Palo Alto, na Califórnia, que ajuda as escolas a fazer mudanças para melhorar a saúde mental dos jovens.

A organização também trabalha com os pais, estimulando-os a se reunir com os vizinhos para organizar atividades como dias sem atividades extracurriculares, nos quais os filhos podem simplesmente brincar, e ensinando-os a não interferir nos conflitos que porventura surjam entre as crianças para que estas possam desenvolver uma capacidade própria de solução de problemas. Uma instituição semelhante, a Let Grow, ajuda as escolas a organizar brincadeiras livres antes e depois do horário letivo.

O dr. Gray, que é consultor desse programa, não se surpreende com a recepção popular. “As crianças estão dispostas a levantar uma hora mais cedo para poderem brincar livremente, uma hora por semana. É ótimo, mas equivale a uma gota d'água para quem está no deserto.”

Esses grupos estão fazendo um trabalho importante, mas, se tamanho desespero é sinal de alguma coisa, não devemos nos surpreender com o número de crianças infelizes. Investir em um segmento da população significa encontrar uma forma de manter seus integrantes seguros e livres – e, quando se trata dos jovens, geralmente ficamos aquém das expectativas. Não é à toa que tantos estão sucumbindo ao desespero; sob vários aspectos, os Estados Unidos desistiram da infância. E das crianças.

Kim Brooks é autora de "Small animals: Parenthood in the age of fear". The New York Times Licensing Group – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.

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