O ataque terrorista à Casa de Concertos de Crocus, no subúrbio moscovita de Krasnogosrk, tem sido a principal manchete nos jornais do mundo inteiro. A violência extrema do ato, quase inteiramente registrada em vídeo e divulgada nas redes sociais, chocou a opinião pública mundial – talvez à exceção de países como Ucrânia e os Estados Bálticos, onde curiosamente tem havido comemorações públicas pelo atentado.
Em memória das vítimas, o governo russo promoveu uma série de eventos em todo o território da Federação com a temática das “garças brancas”. Pessoas se reuniram em locais públicos em diversas cidades para prestar homenagens aos mais de cento e trinta assassinados no ataque, enquanto cantavam a clássica canção russa “Zhuravli” (“Garças”). Em hologramas e projeções de tela, garças brancas voavam sobre os nomes das vítimas e as flores depositadas pelos participantes das cerimônias.
Milhões de pessoas no mundo inteiro compartilharam as imagens das cerimônias de homenagem aos mortos em Crocus. O teor fortemente emocional dos vídeos, mostrando centenas de russos chorando e cantando “Zhuravli” com as garças voando ao fundo, comoveu corações do mundo inteiro. A sonoridade melancólica da canção certamente despertou sentimentos bastante profundos nos ouvintes ocidentais, mesmo que poucos deles pudessem compreender as palavras em russo ali cantadas.
Qualquer pessoa com o mínimo de inserção na cultura musical russa já ouviu “Zhuravli”. É uma das canções mais famosas dos tempos da Grande Guerra Patriótica (nome dado pelos russos à sua participação na Segunda Guerra Mundial). Contudo, a história por trás da canção permanece obscura à maior parte dos seus admiradores fora da Rússia. Este, aliás, era o meu caso até poucos dias atrás, quando, na Rússia, entendi o motivo desta canção ser tão amada pelos locais. Não se trata apenas de sonoridade, nem apenas de poesia, mas do fato de “Zhuravli”, de alguma forma, resumir o espírito guerreiro e resiliente de um povo que perdeu 27 milhões de vidas durante o conflito mais sangrento da história.
Entre fevereiro e março deste ano, fiz uma longa viagem à Federação Russa, passando por quase todas as regiões ocidentais do país. O ponto mais crítico dessa jornada foi minha visita à fronteira russo-ucraniana, em Belgorod, onde testemunhei – e sobrevivi a – diversos bombardeios no contexto da guerra russo-ucraniana. Contudo, não estou aqui para falar de meu trabalho na zona de conflito. A história que quero contar começou depois de meu retorno da fronteira, já em Moscou – mais especificamente dentro da imensidão labiríntica do metrô moscovita.
Ao meu lado estava Natália Prokopenko, uma companheira de trabalho e uma querida amiga, que voltava comigo da tensa e produtiva viagem jornalística a Belgorod. Enquanto corríamos entre as conexões do metrô, passamos por um dos múltiplos pontos nas estações em que artistas populares fazem apresentações musicais. Em Moscou é muito comum que tais apresentações aglomerem centenas de passageiros do metrô em torno dos artistas, onde começam a cantar e dançar canções populares em pleno horário laboral – ainda mais especialmente canções de temática militar ou patriótica. Mas, quando passamos por ali, apesar da lotação, ninguém dançava, senão cantava em voz baixa, quase fúnebre, a famigerada “Zhuravli”.
Aquela canção, de alguma forma, representa uma memória pulsante no imaginário coletivo russo. Praticamente todos os russos possuem antepassados cujas vidas foram ceifadas na Grande Guerra Patriótica (Segunda Guerra Mundial)
Natália, a quem conheço há muito tempo e jamais havia visto chorar, não pôde conter as lágrimas ao simplesmente passar pelo local onde tocavam “Zhuravli”. Nós nem sequer ficamos alguns minutos por ali, já que a pressa para atender a compromissos de trabalho não nos permitia. Simplesmente passamos pelo local – e isso fora o suficiente para Natália derramar lágrimas como os que ali estavam parados.
Mesmo já conhecendo a canção, e considerando-a bela e agradável, não pude compreender aquela experiência absolutamente nova de ver pessoalmente tantos russos chorando ao cantá-la. Perguntei a Natália o motivo de tanta emoção e ela me explicou a história por trás da música, que era totalmente desconhecida por mim – e parece ser muito conhecida na Rússia, onde a memória da Segunda Guerra é preservada em diversos âmbitos. Para falar a verdade, há duas histórias em torno de “Zhuravli”. Uma conta como surgiu o poema e sua real inspiração. A outra conta como a obra se perpetuou no imaginário russo.
Pois bem, a letra de “Zhuravli” é obra do poeta russo Rasul Gamzatov, nativo da região centro-asiática do Daguestão. Gamzatov estava em visita a Hiroxima, no Japão, quando conheceu o caso de Sadako Sasaki, uma criança de doze anos que havia contraído leucemia como consequência da exposição à radiação durante o ataque nuclear americano em sua cidade. Havia no folclore local uma superstição em torno das “gaivotas de papel”, segundo a qual quem fizesse mil gaivotas poderia fazer um pedido e teria seu desejo realizado. Sasaki seguiu as instruções de sua família e, pedindo a cura, trabalhou por dias para completar as mil gaivotas, mas a morte a atingiu antes de finalizar sua obra.
Gamzatov ficou extremamente comovido com a história de Sasaki, mas seu verdadeiro ponto de inspiração para o poema que o eternizaria na literatura russa fora a memória de sua própria família e a das vítimas da Grande Guerra Patriótica. Pouco antes de seu retorno para casa, Gamzatov recebeu por telegrama a notícia da morte de sua mãe. Conta Gamzatov que, embarcando de volta à União Soviética, sua mente entristecida pela história de Sasaki e pela perda materna se afundou na memória de seus dois irmãos mortos em combate durante a Guerra. Mais do que isso, Gamzatov começou a pensar nos milhões de russos tombados em campo de batalha e daí surgiram de sua pena os versos que o colocariam no panteão dos poetas russos: “Às vezes me parece que os soldados/ que não retornaram dos campos sangrentos / não se deitaram sobre a terra, mas se transformaram em garças brancas”.
Bem, essa é a história sobre o surgimento do poema que preenche uma das canções mais famosas da Rússia, mas não é exatamente a ideia que está no imaginário dos ouvintes. Ao se escutar “Zhuravli”, na Rússia, a memória coletiva é conduzida à história de uma pacata família da Ossétia, os Gazdanov, nativos da aldeia de Dzuarikau. A família em questão foi totalmente dizimada na Segunda Guerra Mundial. Um após o outro, os sete irmãos Gazdanov, Magomed, Dzarakhmet, Khadzhismel, Makhaerbek, Sozyrko, Shamil e Khasanbek, morreram em diferentes frentes de batalha.
Contudo, o ponto mais comovente da história se refere aos pais dos jovens aniquilados, Tasso e Asakhamat. A matriarca faleceu quando da notícia do terceiro filho morto. Após isso, mais três telegramas chegaram ao solitário viúvo, Asakhamat. Por fim, quando da morte do último irmão, o carteiro local tomou a decisão de não voltar à aldeia, se sentindo absolutamente incapaz de dar a notícia ao patriarca. Comovidos, os habitantes de Dzuriakau se reuniram e, vestidos com trajes de luto, caminharam em direção à casa de Asakhamat para lhe entregar o último telegrama. Contudo, já ao ver de longe os vizinhos se aproximando em vestes pretas, Asakhamat infartou e faleceu.
A casa da família Gazdanov era, segundo relatos, a maior da aldeia. Posteriormente, a região chegou a ser ocupada pelos nazistas, que fizeram da casa dos Gazdanov uma espécie de “escritório”, dado seu tamanho. Os habitantes da aldeia, esperando em vão receber algum gesto de respeito dos invasores, explicaram aos alemães a história da família que vivia na casa. Os nazistas, então, antes de partirem da aldeia, fizeram questão de explodir a casa e reduzi-la a pó.
Para preservar a memória dos Gazdanov, os moradores se reuniram e ergueram aquele que até hoje é um dos monumentos mais famosos da Ossétia: um memorial onde os sete irmãos são retratados como garças brancas voando pelo céu. Tempos depois, Gamzatov, o poeta, viria a visitar o local, e a passar ali longos momentos, dando um significado ainda mais profundo à sua “Zhuravli” – que hoje é lembrada pelos russos como uma referência à história dos Gazdanov.
Enfim, voltando a Moscou e ao ano de 2024, pude entender naquele momento porque Natália, uma russa de aço, sobrevivente de dois atentados terroristas de separatistas chechenos nos anos 2000 e então recém-saída do front de Belgorod, não podia conter lágrimas diante de uma simples canção. Aquela canção, de alguma forma, representa uma memória pulsante no imaginário coletivo russo. Praticamente todos os russos possuem antepassados cujas vidas foram ceifadas na Grande Guerra Patriótica. Todos os russos se sentem parte dos irmãos Gazdanov. Todos os russos ouviram seus pais ou avós se referirem a algum parente como uma garça branca.
Eu poderia fazer aqui coro à mídia hegemônica ocidental e dizer que, ao usar a temática das garças brancas, o governo russo está promovendo algum tipo de propaganda de guerra em torno de atentado de 22 de março. Mas, com certeza, não consigo me colocar nessa posição de insensibilidade e descaso para com a dor coletiva russa. Conhecendo profundamente aquele povo – que nem por isso deixa de ser um mistério interminável para mim –, percebo as feridas ainda abertas de um passado recente, infelizmente já esquecido no hemisfério ocidental.
Não seria errado de minha parte dizer que a história nos mostra que o povo russo é portador de um grande poder de reação às agressões sofridas. A história da Grande Guerra Patriótica comprovaria este ponto perfeitamente. Mas, ao contrário dos estereótipos, ainda não vejo qualquer disposição belicosa naquela sociedade – o que me parece natural, já que um povo que resistiu a um genocídio tão brutal quanto o da Segunda Grande Guerra, não é tão facilmente desestabilizado.
Aliás, os russos de hoje em dia podem estar desacostumados ao terror, mas não o desconhecem. Assim como minha amiga é sobrevivente de dois atentados, outros milhares de russos das grandes cidades têm frescos em suas memórias os tempos em que separatistas do Cáucaso atingiam civis com grande frequência. Necessário dizer que, apesar de a mídia ocidental considerar as eleições russas como totalmente fraudulentas e orquestradas, qualquer pesquisador que conheça minimamente o país sabe que boa parte da popularidade de Putin se deve ao fato de o líder russo ter de alguma forma pacificado a nação, tornando os atentados cada vez menos frequentes.
Por mais brutal que tenha sido o episódio de 22 de março, isoladamente, este atentado não parece suficientemente forte para quebrar a resiliência daquele povo. Contudo, as garças brancas estão mais vivas do que nunca nas mentes de milhões de russos, que já começam a ver paralelos entre as vítimas do atentado e seus antepassados que não retornaram dos campos sangrentos.
Lucas Leiroz é jornalista e analista geopolítico, colunista nos portais InfoBRICS, CGTN, Global Researcher e Veterans Today. Foi correspondente de guerra no Donbass.
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