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Se alguém quiser vir atrás de mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. (Marcos 8:34)
Todos acreditamos no desenvolvimento tecnológico, no avanço da ciência e, de maneira geral, no progresso. Aliás, cremos mais nisso do que no que nos ensinou a fé. Para quem ainda não conseguiu ver esse fenômeno sacro-moderno, que se lembre do desespero coletivo na vigência da Covid-19 e o que se instituiu a partir dele – tudo serviu para mostrar o que o mundo tem venerado.
Igrejas fecharam e apenas poucos sacerdotes quiseram achar isso um absurdo. E mesmo quando puderam reabrir, antes da hóstia sagrada, era o álcool em gel que untava mãos e amaciava almas. Isso sem contar a exigência do distanciamento, das máscaras, a mudança nos ritos, o adiamento de casamentos, de batismos, as transmissões on-line... Os olhos do povo não miravam mais o sacerdote e quando o faziam o sacerdote se mostrava apenas como mais um interlocutor dos especialistas, dos cientistas, que por sua vez estavam de olho nos números, nos dados, no dinheiro, nas coisas do mundo. Ora, quem tem olhos para baixo não tem olhos para cima.
Essa barbárie eclesiástica não surgiu agora, a direção do mundo não mudou de uma hora para a outra. O mundo, na verdade, já há muito deixou de admirar a ordem celestial. Não porque não tem vontade, pois é da nossa natureza buscar o melhor, mas porque desaprendeu a ver – afastando-se de si e se confundindo quanto ao melhor.
Perdendo o sentido real de transcendência, da superação de si e portanto do seu próprio declínio, deixando de olhar para o céu, o homem passou a buscar nas abstrações materialistas a superação da sua própria condição. É como se, para se limpar, devesse chafurdar-se na lama, e isso é o progresso: uma perversão da visão do alto, uma confusão entre transcendência e imanência, a perda do sentido da vida e a sua consequente negação: o niilismo.
Santo Agostinho em suas Confissões reconhece que é impossível fugir da presença de Deus, pois tudo é seu feito, tudo é sua obra, e que aqueles que não a percebem o fazem porque estão afastados de si mesmos.
Olhar para o alto não significa ter os olhos para o sol, para as nuvens ou para o céu estrelado, embora isso também tenha o seu valor. Olhar para o alto é sentir-se na presença de Deus.
Sentir-se na presença de Deus! – O que é isso? Por que essa afirmação não nos toca? Parece que para sentir a presença de alguém precisamos já estar vendo esse alguém. Sinto-me na presença da minha mãe quando ela está comigo, diante de mim; sinto-me na presença de um amigo quando estou com ele, vendo-o. Exigimos isso também de Deus? Exigimos vê-lo com os olhos, tocá-lo com as mãos?
Antes, pensemos: não é o corpo físico, o corpo da biologia, que garante a presença de alguém, porque podemos senti-la quando olhamos para sua fotografia, quanto escutamos esse alguém falar, ainda que à distância, quando vemos algo realizado por ele, quando estamos no lugar por onde passava ou mesmo quando evocamos suas lembranças. A experiência que tenho ao me lembrar de alguém é a experiência da presença. A presença, neste sentido, é sempre um reconhecimento. Talvez por isso tenhamos que velar o corpo morto daqueles que conhecemos: este ato é a experiência da dissociação entre a imagem do corpo e a presença. O morto velado deixa a presença enquanto corpo e vive na eterna presença da lembrança, que jamais se viu morrer.
A presença é o reconhecimento, e isso pode se dar de muitas formas: na música reconheço o compositor; na pintura, o pintor; na poesia, o poeta; na escrita, o escritor...São os atos, os feitos ou, de maneira geral, o fazer, a ação, o verbo de alguém que o faz presente. Mesmo sem termos visto todos os quadros de Van Gogh, por exemplo, se temos familiaridade com o pintor, se o conhecemos, talvez consigamos reconhecê-lo em quadros por nós nunca antes contemplados, porque o seu estilo é a sua presença, é aquilo pelo que o distinguimos. Vemos um quadro do Van Gogh e dizemos “isso é um Van Gogh”, ou seja, “estamos na presença do Van Gogh”. Essa presença é eterna, indissolúvel, pois mesmo que alguém o imite, ainda assim será uma “imitação de Van Gogh”, isto é, a sua presença estará ali, pois é o seu jeito, o seu modo de ser, o seu fazer que estará sendo replicado.O imitador também faz presente o imitado.
Santo Agostinho em suas Confissões reconhece que é impossível fugir da presença de Deus, pois tudo é seu feito, tudo é sua obra, e que aqueles que não a percebem o fazem porque estão afastados de si mesmos, perdidos, enlevados pela soberba. É certo que para o santo o encontro consigo mesmo e a percepção da divindade não são coisas que dependem do homem e assim tampouco de uma fala sobre o assunto, mas única e exclusivamente do próprio Deus, que, pelo Verbo, isto é, pelo criar do Criador, encaminha o homem para si. Cabe-nos apenas o deixar-nos encaminhar pelo Verbo– apesar dos nossos desejos.
O Verbo de Deus é aquilo que faz ver. Não é o nosso olho, nem nada relacionado ao sistema ótico ou neural, tudo isso é reza cientificista. O fazer-ver de Deus é o que dá sentido a tudo, isto é, é o que faz tudo ser tal como é, na sua pureza e integridade, na sua liberdade e unidade. O Verbo divino é o fazer-se da coisa, o ser o que se é. Uma maçã é o que ela é graças ao Verbo, graças ao sentido maçã, ao sentido dado pelo Verbo. Isto não significa que o Verbo dá sentido àquilo que já existe, como se ele moldasse a matéria, o amontoado de átomos, e fizesse a maçã, pois o sentido das coisas vem antes da sua pretensa materialidade. É só porque há maçã que podemos falar da matéria da maçã, dos átomos da maçã.
Na verdade, a própria existência já é o sentido das coisas: se vejo, por exemplo, uma maçã, vejo-a desde o seu próprio sentido, sem o qual seria impossível vê-la. A interpretação que faço da maçã, sobre ela servir para isso ou para aquilo ou sobre ela ser dessa espécie ou de outra, isso tudo é tardio, só é possível desde o seu próprio sentido, desde o seu próprio aparecimento. As coisas são o que elas parecem ser, não há nada por detrás delas, não há matéria, não há nada que seja causa da coisa – não há coisa da coisa. Aliás, isto soa a Alberto Caeiro: “as coisas não têm significação: têm existência. As coisas são o único sentido oculto das coisas”.
Nada pode ser dito ou pensado de algo sem o seu aparecimento. O Verbo é o que faz aparecer – e isso é o princípio de tudo.
No ocidente, onde a religiosidade científica – o progresso – pôde se instaurar, costumamos dizer que as coisas só aparecem porque existem independentemente de nós e que a nossa vida evolutiva permitiu a sua percepção através dos sentidos físicos:um mecanismo surgido para a nossa autopreservação. Porém, perguntemo-nos: o que vem antes, o pensamento e criação da nossa história (que inclui a cena do surgimento da nossa percepção) ou o nosso ver o mundo e a nós mesmos? Melhor: o que é primeiro, a história que criamos sobre aquilo que aparece ou o próprio aparecimento? Ora, para que pensássemos e formulássemos narrativas a respeito do homem e do mundo, foi necessário antes o ver – e, neste sentido, ver e aparecer são essencialmente o mesmo: vemos porque aparece, aparece porque vemos. O fazer-ver do Verbo é o seu fazer-aparecer.
Mas como seguir a orientação do santo de deixar-nos encaminhar pelo Verbo? O que isso significa? A chave para estas questões parece estar no Verbo encarnado, em Jesus Cristo: o caminho, a verdade e a vida. Mas também sobre ele encontramos o problema da visão e do reconhecimento. Quem é capaz de saber o que foi Jesus? Como reconhecê-lo? Quem pode genuinamente ler a Bíblia? Mesmo os santos admitiram não conseguir entendê-la na sua plenitude, quem seríamos nós para fazê-lo? Não temos as respostas para essas perguntas.
Há, porém, algo inexorável na trajetória de Cristo que talvez nos coloque em sintonia com ele e assim conosco mesmos. Esse algo é a cruz. Na cruz está a realização do Cristo, a sua paixão, o seu sofrimento, aquilo que sela a sua união permanente com Deus. O enfrentamento da cruz foi a sua decisão pela vida, sua afirmação e aceitação, o encontro consigo. A cruz foi o sentido dado ao Cristo pelo Verbo e, portanto, aquilo que não só o realizou na e como a presença de Deus, mas o fez aparecer. (Agora me veio a palavra de um amigo meu que só escreve títulos e de quem roubei o deste texto – eventualmente também escreve uma frase ou outra, e estas eu também roubo –, o Alexandre Gomes Pereira, professor da UFPR: “há algum tempo acho divertidamente anacrônico que a menção evangélica à cruz apareça antes da crucificação”.)
Há, porém, algo inexorável na trajetória de Cristo que talvez nos coloque em sintonia com ele e assim conosco mesmos. Esse algo é a cruz.
A cruz faz-ver – e não há muito mais o que dizer sobre ela, sobre o seu significado, porque esse também pode ser mais um descaminho. Fiquemos apenas com a indicação de que a cruz é a vida que nos foi entregue, aquilo que é o nosso fazer, o cultivo da nossa presença.
Embora pouco possamos falar a respeito da cruz, muito podemos notar e dizer sobre a fuga dela: vejamos hoje o que não é ciência médica senão o ambiente em que ilusões sobre a superação da dor e da morte são criadas e fomentadas, esfumaçando a visão da vida, seja com a esperança do remédio, da vacina e da cura, seja pelos atrozes procedimentos que descaracterizam e usurpam o corpo, templo da vida e imagem da alma, como aqueles que pretendem a reconstrução do sexo e o controle sobre a sua natureza.
Podemos também falar da ciência política e da ciência social, que são apenas expressões do humanismo e propõem a salvação do homem pelo homem – e assim, enredando-se de maneira nefasta naquela confusão entre transcendência e imanência, aprisionam-nos em suas ideologias materialistas e contrárias à visão do alto... Enfim, olhemos ao redor e vejamos o que há: fuga, desespero, medo da cruz, medo da vida. Essa é a nossa fé, a nossa entrega ao progresso.
O que fazer diante disso? Ora, apenas o mínimo: não fugir – ou pelo menos ter consciência de que isto é o que vale, porque é o Diabo que foge da cruz.
Luiz Alberto Thomé Speltz Filho é graduado em Direito, Filosofia e Matemática, mestrando em Letras e Filosofia, e editor do periódico “Héstia”.