Abro uma revista enquanto estava a aparar a barba e me deparo com uma longa reportagem sobre a Coreia do Norte, uma espécie de museu social das obsolescências políticas do século XX. Enquanto meu barbeiro fazia piada sobre a proibição geral do uso do biquíni, minhas risadas externas alimentavam minhas risadas internas acerca do ridículo fim para o qual os humanismos utópicos conduziram-nos ao longo do século passado, o mais curto deles, na bela sacada de Hobsbawn.
Se existe algo patente no início deste século é a dissecação dos resultados desses humanismos que, há pelo menos duzentos anos, prometiam a definitiva consagração do homem como o centro e o cume do mundo e da vida. Um homem bom, belo e perfeito: na verdade, um deus para si mesmo.
A mais grave carência dessas ideologias humanas – demasiadamente humanas – era precisamente o fato de que, no seio de cada uma delas, não se confiava na atuação de mulheres e de homens reais, concretos e históricos para se levar adiante a grande mudança revolucionária que deveria trazer consigo “a paz e a abundância material” para a civilização. Como diz no clássico do Iron Maiden, só nos resta “see again heaven so far away from this hell on Earth”.
Todo o processo de mudança fiava-se em forças mecânicas, anônimas e cientificistas, como o progresso, a luta de classes e a mão invisível do mercado, as quais tinham, em comum, uma escassa consideração por cada uma das pessoas humanas, vistas, em regra, como uma variável “matemática” da equação social. Recordo-me de Lênin ou Stalin, quando um deles disse que a morte de milhões era uma estatística. Hoje, chegado o momento de despertar do ”sonho humanista”, estamos mais desamparados ainda, porque muitos desses humanismos, fundados numa postura de constante suspeita, corroeram nossa confiança nas possibilidades de florescimento interior do ser humano.
Em certo sentido, os humanismos utópicos esfumaçaram-se, pois seus projetos, de fato, cumpriram-se: não porque realizaram suas propostas de uma Sion terrena, mas por terem esvaziado o ser humano de sua essência, reduzindo-o à matéria, e “apostado” no entrecruzar-se de forças puramente cegas e fáticas da vida humana. Curioso notar que o desmascaramento de toda a ”velharia bolorenta” da tradição clássica seria a condição necessária para o advento da “emancipação definitiva” da humanidade. Nada mais enciclopedista que isso.
Todavia, tanto Schelling, como Kierkegaard ou Dostoievski e mesmo Nietzsche, cada qual a seu modo, descobriram que o resultado concreto dessa transmutação humanista, provocada pela maneira própria de se pensar na modernidade, foi o niilismo. O marxismo duro, o liberalismo economicista e o darwinismo social converteram-nos em homens ocos com a cabeça recheada de palha, no dizer de Eliot.
É hora de encaminhar esse novo milênio, ameaçado pelo esgotamento do modernismo e pela confusão do pós-modernismo, rumo ao resgate daquela essência perdida, dando-nos conta de que o parâmetro decisivo da vida social não oscila mais no eixo Estado/Mercado, mas no eixo humano/não-humano, isto é, na busca de um aclaramento intelectual daquilo que é bom e melhor para o homem, como contraposto àquilo que o desumaniza, esvazia seu ser e o reifica como mais uma coisa entre tantas outras. O ser humano está nauseantemente cheio de se sentir vazio.
Se Skinner queria situar o ser humano para além da dignidade e da liberdade, podemos dizer, com Spaemann, que, para o verdadeiro humanista, é suficiente não precisar ir além do bem ou do mal. Onde podemos encontrar, nesses tempos nebulosos, a luz que nos devolva a nós mesmos? Onde podemos descobrir um aguilhão espiritual que nos desperte do conformismo existencial e da anorexia reflexiva de uma época em que o consumismo massivo, a apoteose do eu e o hedonismo reinante nos cegam para a percepção daquilo que constitui o florescimento do ser humano enquanto tal?
Eis um bom começo de resposta: os clássicos. Mais do que simplesmente a eles retornar, numa espécie de resgate nostálgico de um passado perdido, devemos avançar em sua direção. Tentar, a partir de nossa própria condição, pensar seus ensinamentos com o rigor, a magnanimidade e a beleza com que foram refletidos um dia. Sem uma postura neo-romântica, porém com a sede de se voltar a injetar um fluxo de vida que nunca se esgotou totalmente e do qual brotaram os melhores frutos de uma civilização que, hoje, esqueceu-se da seiva que sempre a nutriu.
Os clássicos – segundo Newman, compostos pelos Livros da Alma e o Livro de Deus – portam aquele fundo indivisível em que os diversos saberes se comunicam e se enriquecem. Por isso, quem é mais "profundo", conhece mais tais livros, acumulou mais experiência nas profundezas do espírito humano e tem mais aptidão para julgá-lo melhor.
O Livro de Deus é o livro da revelação cristã e seu reflexo, a teologia, que, durante séculos fez parte da universidade, salvo, ainda hoje, na Alemanha, onde, em regra, a teologia protestante divide, tranquilamente, um prédio com a filosofia. A teologia dá um conhecimento das coisas do ponto de vista de Deus, que completa a experiência que podemos obter das coisas por si mesmas.
Em particular, a teologia revela quem é Deus, quem é o homem e seu destino. Se a filosofia vive das perguntas, a teologia parte das respostas – razão e fé que dialogam fecundamente – e isso é uma referência importante, porque essa relação cognitiva oferece luz e intuições em sua reflexão sobre qualquer saber, embora seja necessário sempre respeitar a metodologia própria de cada disciplina.
Os Livros da Alma são muitos – mas menos do que os Livros da Natureza, que também são muito importantes –, expandem-se de uma forma muito diferente e correspondem, grosso modo, aos livros da filosofia, literatura, belas artes, ciências sociais e história. O livro da filosofia é o mais importante, por ser o mais central ao ser dos demais saberes e ao ser do homem. Coleta conhecimentos sobre o ser das coisas, o interior do homem e os fenômenos da consciência humana – como inteligência, vontade, liberdade, ética, bem/mal – com seus vários e elevados sentidos – religioso, moral, estético, etc. Estuda como se dá o conhecer, o agir e o amar humanos, como são suas aspirações e, também, como são suas misérias e limitações.
O livro da literatura é o mais “espesso” dos Livros da Alma. Contém toda a poesia, a prosa, o teatro, a comédia, a tragédia, o romance, o conto, o folclore, a crônica e o cinema (narrativa). Expressa, de muitas maneiras, a condição existencial da alma, os problemas que o ser humano tem em sua relação com o mundo, os outros, a felicidade, o sofrimento, o mal, a morte e Deus.
O livro das belas artes tem menos “letras”, mas muitas “ilustrações”, as quais são guardadas em seu contexto histórico: as obras da música e das artes plásticas, a arquitetura, a pintura, a escultura, o desenho, a moda, as artes decorativas, a fotografia e o cinema (estética). Tais livros nos abrem para a realidade da beleza – não só do ser humano, mas de toda vida e natureza que nos circunda, como chave do mistério ao transcendente –, acalentam nossa esperança e fomentam, ainda mais, nosso “espanto ontológico”.
O livro das ciências sociais reúne a experiência das humanidades que trabalham mais diretamente com a práxis humana: a política, a pedagogia, o direito, a economia, as ciências políticas, a sociologia, a linguística, a filologia,a antropologia filosófica, entre outras. Tais saberes estão sempre tensionados, cada qual a seu modo e segundo a realidade histórica vivida, para a busca da verdade prática, a verdade contingente e mutável de acordo com as circunstâncias, mas que guarda conformidade entre o ditame da razão prática e as exigências da própria realidade antropológico-social. A verdade prática, sem renunciar aos princípios que a fundamentam, como por exemplo, o princípio do fazer o bem e evitar o mal, é sempre uma “verdade por se fazer”, que cobra sentido e alcance numa circunstância histórica e problemática específica.
O livro da história recolhe os fatos relevantes da vida humana e, também, a história das criações de sua fantasia: dos autores e suas obras, das sociedades, de suas crenças, conhecimentos, de sua organização e de sua técnica, a história da cultura. Existe história de tudo. E, em particular, todo conhecimento humanístico tem sua história e merece ser estudado, porque é parte integrante desse conhecimento e, normalmente, a melhor propedêutica para nele entrar.
Em todos os Livros da Alma, é necessário referir-se ao que acontece dentro do homem. Todos procedem do complexo entrelaçamento da alma humana e todos a expressam de certa forma. É por isso que eles são chamados também de “Humanidades”. Esses saberes partem desse centro – o homem –, são contrastados com ele, aí se encontram e voltam a ele com suas contribuições. Se perdem esse eixo giratório, carecem de alicerce e são arrastados por qualquer corrente ideológica. Essa é a experiência que obtemos ao observar tantas tendências anti-humanísticas na filosofia, psicologia, sociologia, economia, antropologia cultural e direito no durante o século XX. Por isso que, os clássicos são perenes: os picos alcançados nunca perdem sua altura.
O avanço aos clássicos será um empenho, para uns, de regeneração; para outros, de descobrimento; e, para todos, de deslumbramento da dimensão mais original e originária para mulheres e homens de todas as épocas. E, nos três casos, até mesmo para o ditador do cabelo escovinha que decretou o fim do biquíni na Coreia do Norte. Se, mesmo assim, ele não compreender, sugeriria que começasse por Strauss, que ele aprecia, segundo a mesma revista, para quem o clássico caracteriza-se por sua incrível perenidade, nobre simplicidade e serena grandeza.
André Gonçalves Fernandes, Post Ph.D., é juiz de direito, professor de filosofia da Academia Atlântico, pesquisador em Filosofia da Educação pela Unicamp e membro da Academia Campinense de Letras.
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