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Como os negros (não) viajavam de carro nos EUA

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Eu soube que os dias preguiçosos de verão estavam chegando ao fim quando minha família se espremeu no nosso Cadillac Eldorado preto 1979, com bancos de couro vermelho, e começou a viagem de dois dias de Morristown, em Nova Jersey, a Hilton Head Island, na Carolina do Sul.

Fim da década de 70. Meu pai viu um dia propagandas que anunciavam a beleza natural de Hilton Head e quis conferir a coisa de perto. Ele e minha mãe decidiram que nossa família merecia férias – ou melhor, um momento para estreitar laços e criar boas lembranças – como qualquer outra. Assim, duas semanas antes do feriado do Dia do Trabalho (Labor Day), meu pai prendeu um rack para quatro bicicletas no teto do carro e ajeitou nossas raquetes de tênis de madeira nos espaços vazios que ainda restavam no porta-malas.

Toda viagem de carro que se preze tem uma trilha sonora, e a nossa era composta de clássicos do rhythm & blues. A minha música favorita era Hot Fun in the Summertime, de Sly and The Family Stone, hino do verão de 1969. Ela me fazia acreditar que estávamos ganhando tempo, voltando o calendário para julho. “Aqueles dias de verão / Tão cheios de diversão”.

Eu estava muito ocupada lendo Ramona the Brave e tentando proteger o espaço inexistente do assento do meio das minhas duas irmãs mais velhas para perceber que meu pai ia ficando cada vez mais desconfortável conforme íamos seguindo para o sul. Quando escureceu, o carro ficou em silêncio. Como a Rodovia 278 foi concluída só em 1998, tivemos de atravessar um verdadeiro labirinto de estradinhas de duas mãos para chegar a Hilton Head.

O ‘Livro Verde do Motorista Negro’ era um guia que oferecia aos afroamericanos opções seguras e receptivas de hotéis, restaurantes e postos de gasolina

Mais tarde, meu pai contou que não ficou ansioso ao atravessar a Virgínia, mas, quando passamos a divisa com a Carolina do Norte, respirou fundo, balançou a cabeça e pensou: “Bom, agora estamos no Sul”. Ele vivera os tempos de segregação no Norte; uma vez, andando de bicicleta na 43rd Street, em Chicago, atravessou a State Street e foi perseguido por um grupo de garotos brancos. De qualquer forma, ainda achava o Sul mais perigoso, mais violento e mais imprevisível.

Isso porque tinha nascido lá – mais precisamente em Augusta, na Geórgia, em 1939. Mudou-se com a mãe, minha avó, aos 3 anos, engrossando o imenso êxodo de afroamericanos que deixaram a região. Quando voltava à terra natal para visitar os parentes, durante as férias de verão, era forçado a seguir os padrões de comportamento que as leis Jim Crow impunham. Entrando em um ônibus em Atlanta, por exemplo, pegou o primeiro banco disponível, que era na frente, mas sua avó o agarrou e o puxou para a parte de trás. Ignorante em relação aos costumes raciais locais e apavorado com o olhar ameaçador que recebeu do motorista, meu pai se voltou para a avó e não parava de perguntar: “Por quê? Por quê? Por quê?” Minha bisa, imperturbável e obstinada, deixou as perguntas do menino sem resposta, pois era melhor não tentar oferecer explicação a leis que, de qualquer forma, não faziam sentido nenhum.

Como ele mesmo confessou depois, esses eventos lhe causaram uma impressão permanente. Acabou desenvolvendo um medo terrível dos brancos, que pareciam ter o poder de controlar todos os movimentos que os negros faziam. Levaria um tempão para deixar de pensar assim.

Menos de uma década depois da tal viagem de ônibus, em 1953, Dinah Shore ficou famosa ao convocar os norte-americanos para “Ver os EUA em seu Chevrolet” (“See the USA in your Chevrolet”), cantarolando: “Na estrada que corre ao lado do dique / o desempenho é mais suave / Nada pode superá-lo / A vida fica mais completa com um Chevy”.

A maioria dos motoristas negros, porém, não teria acesso aos prazeres de meados do século que ela cantava – como o de pegar a estrada, explorar o país, visitar os parques nacionais do Oeste e gozar da liberdade de dirigir o próprio carro em uma das rodovias federais recém-concluídas. As alegrias de “sair por aí” que o escritor da Geração Beat Jack Kerouac descreveu poeticamente em Pé Na Estrada, clássico de 1957, raramente se viam acessíveis aos viajantes negros, independentemente de renda ou nível. Os afroamericanos basicamente foram deixados de lado na cultura do carro que floresceu no pós-guerra.

Em 1947, Lester Granger, presidente da Liga Urbana Nacional, escreveu: “No que se refere às viagens, os negros são os últimos pioneiros do país”. Não é para menos: um artigo da Negro Digest em 1950 descreveu os problemas que os viajantes negros enfrentavam “para conseguir acesso apenas aos sujinhos mais acessíveis e aos pulgueiros mais ordinários” e explicou que “os EUA podem se tornar uma experiência tão humilhante e desagradável que a grande maioria das pessoas de cor simplesmente nem pensa em férias da mesma forma que o resto do país”.

Jim Crow era temperamental e caprichoso: o comportamento que era aceitável em uma cidadezinha podia não ser em outra, a apenas alguns quilômetros de distância. Os donos de postos de gasolina geralmente permitiam que os motoristas negros abastecessem, mas podiam se recusar a vender uma Coca-Cola ou a liberar o uso do banheiro, o que podia causar grandes humilhações, principalmente se a pessoa estivesse acompanhada dos filhos. No Mississippi, as leis proibiam negros de ultrapassarem brancos nas estradas vicinais, pois não podiam jogar poeira nos veículos dos mesmos. Usar um boné de chofer ou fingir estar entregando o carro para um branco emprestava aos negros a aparência de servidão e dependência que era socialmente aceitável.

O Livro Verde do Motorista Negro era um guia que oferecia aos afroamericanos opções seguras e receptivas de hotéis, restaurantes e postos de gasolina. O prefácio dizia que, desde a primeira edição, em 1936, “a ideia é fornecer ao viajante negro informações que o poupem de enfrentar dificuldades e constrangimentos, tornando seu passeio mais agradável”.

Usar um boné de chofer ou fingir estar entregando o carro para um branco emprestava aos negros a aparência de servidão e dependência que era socialmente aceitável

Os caprichos da estrada fizeram muitas vítimas. O presidente John Kennedy se desculpou pessoalmente com o dr. William Fitzjohn, encarregado de negócios de Serra Leoa, depois que os funcionários do restaurante Howard Johnson de Hagerstown, em Maryland, se recusaram a atendê-lo. Os donos – brancos – de outro estabelecimento em Maryland fizeram o mesmo com Adam Malick Sow, embaixador do Chade, deixando bem claro que foi porque ele era negro.

Situações como essas serviram de base para a assinatura do Ato dos Direitos Civis, em 1964, que garantia aos negros norte-americanos acesso igualitário a acomodações públicas. Acontece que os viajantes de cor continuaram a sofrer traumas bem depois de sancionada a lei: um mês depois, em 4 de agosto, os corpos de três ativistas – Michael Schwerner, Andrew Goodman e James Chaney – foram encontrados na cidade de Philadelphia, no Mississippi. Integrantes da Ku Klux Klan os mataram a tiros em uma estrada de terra e jogaram os cadáveres em uma represa. O carro em que se encontravam foi queimado e, mais tarde, descoberto em um pântano próximo. Nestes últimos quatro anos, as mortes de Sandra Bland, Laquan McDonald e Philando Castile nas mãos de policiais deixa bem claro que os motoristas negros estão longe de se sentir protegidos.

Hoje em dia, pego um voo de San Francisco para Savannah, na Geórgia, alugo um carro e, menos de uma hora depois, estou em Hilton Head. Meus pais ainda viajam de Cadillac – mas agora é uma SUV cinza que não tem nem metade do glamour do Eldorado. “Será uma boa alugar bicicleta este ano?”, me pergunto, ignorando solenemente a realidade de que, aos 82 anos, meu pai já não consegue montar e desmontar, nem parar, ainda que rapidamente, com um pé no pedal e o outro balançando do mesmo lado.

Sempre quis saber por que meus pais se arriscavam tanto para ir para Hilton Head, ano após ano, sabendo dos perigos da viagem, mas pegando o carro mesmo assim. Afinal, como minha mãe me lembrou recentemente, para os negros “todo lugar era perigoso”. Talvez tenha sido a influência da minha bisavó, a mesma que puxou meu pai para a traseira do ônibus, mas que também o ensinou que era valorizado e merecia vivenciar o mundo como qualquer outra criança. Ele aprendeu a lição e passou adiante.

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