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OPINIÃO DO DIA 1

Complacência suicida

A elite formadora de opinião brasileira cultiva uma am­­bi­­guidade hipócrita em relação a questões cruciais: mos­­tra-se perturbada com as drogas, mas reage com dis­­pli­­cência e bom humor quando uma celebridade é flagrada com maconha ou cocaína

O episódio sórdido que envolve o goleiro Bruno do Flamengo, que se seguiu à revelação da intimidade entre Adriano e Vag­­ner Love com traficantes e bandidos, carrega vários significados preocupantes: a sensação de onipotência e a indiferença à lei por parte dos envolvidos; e o descaso com o que pense ou venha pensar a opinião pública. O perturbador é que os três são ídolos esportivos, heróis de uma multidão de meninos e adolescentes pobres, que se inspiram neles para chegar à riqueza e à celebridade. Mereçam ou não, com suas histórias de vida de meninos que saíram da pobreza e da favela para uma vida de fausto e bajulação os três são vistos como modelos a ser imitados. Na percepção pouco seletiva de milhões de torcedores e de grande parte da imprensa esportiva, atletas consagrados são seres acima do bem e do mal, símbolos de todas as virtudes porque fizeram um gol salvador ou evitaram um gol certo contra seus times favoritos. Quem os condena ou absolve é o sucesso dentro do campo, nada mais.

Não é difícil entender o efeito devastador que o comportamento dos atletas e das celebridades têm sobre aqueles que os veem como modelos. A partir dessa identificação psíquica, desenvolve-se uma identidade de atitudes, comportamentos e valores. Se seu ídolo bate na namorada ou na esposa, que mal há em dar uns petelecos na própria? Se ele cheira cocaína ou bebe sem limites, que há de errado em fazer o mesmo? Se ele não fica constrangido em se associar com a bandidagem, por que se deve ficar? Se o herói não dá a menor importância para o que a lei determina, por que perder tempo com essas perfumarias? Pior do que uma multidão de transgressores dos códigos de conduta coletiva, forma-se uma multidão de anômicos, aqueles que não desobedecem à lei, à norma porque simplesmente a ignoram, agem como se elas não existissem, não acreditam que estejam fazendo nada condenável e que não há o que temer nem ter remorso.

A elite formadora de opinião brasileira tem enorme parcela de culpa, pois cultiva uma ambiguidade hipócrita em relação a questões cruciais: mostra-se perturbada com as drogas, mas reage com displicência e bom humor quando uma celebridade é flagrada com maconha ou cocaína; proclama-se guardiã do direito que todos têm de ter sua vida e integridade protegidas da violência e do esbulho, mas esmera-se em encontrar explicações sociológicas para perdoar os criminosos; alarma-se com a dissolução familiar, mas idiliza e estimula a sexualidade precoce e irresponsável dos adolescentes. No fundo, confirma-se o que disse Oliveira Lima a respeito da im­­por­­tância dos valores afetivos e familiares em contraposição aos va­­lores coletivos e cívicos na sociedade brasileira: somos extrema­­men­­te fiéis aos primeiros, à família, aos amigos, aos correligionários políticos; mas, nas relações entre o indivíduo e o Estado, a lei e a norma, nossa fidelidade e nosso entusiasmo diminuem sensivelmente, quando não desaparecem por inteiro.

É necessário lutar contra essa complacência suicida com a falta de limites e isso tem de permear todos os espaços sociais. Zico, o maior atleta do Flamengo de todos os tempos, pode ser um excelente exemplo. Ele, que assumiu a direção do futebol do clube, já avisou que sua política será de tolerância zero com desvios de comportamento em qualquer aspecto da vida dos atletas. Zico ocupa um lugar permanente em um panteão limitadíssimo de virtuoses do futebol e fora dos gramados, revelou-se ao longo de toda sua vida um exemplo de caráter e de solidez de valores. Sua tarefa é provar que não precisamos escolher entre o talento e o caráter para escolher nossos heróis. Não será fácil, em um país em que não falta talento, mas onde o caráter está em constante escassez.

PS: A selvageria fez mais uma vítima na figura da Professora Telma Fontoura, filha de meu queridíssimo amigo Ivan Fontoura. Infelizmente não foi a primeira nem será a última vítima da absoluta insegurança que passou a ser parte de nossa vida.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do doutorado em Administração da PUCPR.

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