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As pequenas empresas e as lojas de bairro são parte relevante não apenas da economia, mas daquilo que consideramos vida urbana. No imaginário brasileiro das cidades de todos os tamanhos não faltam a padaria da esquina, o salão de beleza e as lojas de bairro, resistindo bravamente aos hipermercados e ao shopping centers.
Com as sucessivas crises econômicas, primeiro em 2015 e, agora, a provocada pela pandemia do coronavírus, as preocupações se voltam para a sobrevida do pequeno empreendimento. Menores que as grandes corporações em vários sentidos – parcela do mercado, quantidade de capital de giro e reservas, disponibilidade para crédito, garantias de pagamento –, as pequenas empresas parecem sofrer de forma especialmente grave o impacto do esfriamento da economia, fechando suas portas, atrasando aluguéis e salários, e demitindo funcionários. Os donos da padaria e da loja de sapatos são retratados como uma brava linha de resistência, lutando quixotescamente contra a burocracia, os altos impostos e a perversidade da concorrência das multinacionais.
Parte do problema das pequenas empresas são realmente os tributos e os entraves burocráticos – o indicador mais citado é o tempo médio para abrir uma empresa, que no Brasil é de 17 dias (enorme avanço: eram 83 dias em 2016), enquanto no Chile e nos EUA é de apenas quatro dias. Mas nem tudo é culpa do governo. Apontar as falhas do poder público é praticamente um dever cívico, porém a crítica deve avançar um pouco mais se quisermos esmiuçar os problemas com maior perspicácia.
A economia é mais uma questão de comportamento que de matemática. O motivo de as pequenas empresas renderem e guardarem menos dinheiro do que seria ideal deve-se, em parte, às decisões tomadas na fonte do dinheiro – isto é, o consumidor. Nós que compramos também somos responsáveis.
Hipermercados e shopping centers não surgiram à toa. Sua existência hoje parece quase natural, mas o fato é que surgiram a partir de um movimento intencional de adoção dos subúrbios residenciais como modelo de expansão das cidades nos Estados Unidos, o que causou seu espraiamento e, consequentemente, o uso quase exclusivo do automóvel como meio de deslocamento. A massa de cidadãos-motoristas passou a gastar uma parcela cada vez maior do seu tempo livre dentro do carro no trajeto casa-trabalho, trafegando por quilômetros em vias expressas que consomem muito terreno, cujo valor precioso despenca (quem quer morar ou trabalhar colado na via expressa?), sobrando o uso para atividades relacionadas ao transporte rodoviário: postos de gasolina, oficinas, motéis e afins.
Como os motoristas fazem compras e seus carros ocupam espaço valioso e exíguo no centro da cidade, o comércio de varejo uniu o útil ao agradável. No território dos postos e das concessionárias de automóveis surgiram os strip malls que até hoje pululam pelos EUA e Canadá, com seus enormes bolsões de estacionamento, e também os hipermercados, os Walmarts e Costcos, e os shoppings propriamente ditos.
O Brasil imitou e adaptou esse modelo de desenvolvimento urbano e de consumo, enfiando o primeiro prego no caixão das lojas de bairro. Sim, houve muito incentivo governamental e não faltou pressão de grandes empresas para que isto acontecesse, mas nossa aquiescência foi fundamental para que o modelo vingasse.
Preferimos a sensação de vida abastada que proporcionam um carro novo e uma casa grande no “subúrbio”, que no Brasil transmutou-se em condomínios fechados por motivos, entre outros, de segurança pública. Dividimos o preço inflacionado de automóveis ou das quinquilharias que juntamos em prestações sem fim justamente porque gastamos além do que conseguimos ganhar com nossos salários. Padrão de vida e padrão de consumo viraram quase sinônimos, significando uma meta de satisfação avaliada pelo que se pode comprar: tipo de carro, tamanho de casa, bugigangas que acumulamos. Acostumamo-nos a um consumismo que repassa boa parte da nossa renda a enormes cadeias de lojas, com produção internacionalizada e lucros remetidos para sabe-se lá que riquíssimos empresários no exterior, em troca de 10% de desconto.
A questão é a consequência coletiva dos hábitos individuais, e não o tamanho da loja em si. Cada real que vai para uma grande empresa internacional poderia ir para uma pequena loja familiar. Estimativa da Civic Economics, uma consultoria norte-americana de negócios locais, aponta que, para cada dólar pago a um negócio local, 68 centavos retornam à comunidade por efeitos econômicos sucessivos – o mesmo dólar pago a uma grande rede comercial retornaria apenas 48 centavos para a economia local. Comprar localmente é um ótimo investimento na sua vizinhança.
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Veio a crise da pandemia e, com ela, a recessão. Se o isolamento imposto é mais danoso para a economia que o risco de contágio, não importa muito agora: o fato é que, segundo todos os indicadores nacionais e mundiais, todos consumiremos menos.
Então, voltamos nossa atenção para a lojinha do bairro que pode fechar, da família que ficará sem prover, dos funcionários que perderam seus empregos. Acontece que não atentamos para nosso próprio comportamento até três ou quatro meses atrás. A maioria das pessoas, especialmente nas metrópoles, comprava nos grandes varejos, assinava serviços monopolistas, gastava nas grandes redes comerciais para economizar merrecas, pegava o carro e ia longe para comprar em alguma multinacional, ignorando a loja do próprio bairro. Estávamos pedindo frete grátis um mês antes de reparar que a loja da esquina vai fechar.
O momento é propício para readaptar nossos hábitos de consumo, ajudando estas empresas com nossas escolhas sobre nosso dinheiro, onde as grandes corporações e a ineficiência do governo não atingem tão duramente.
Pedro Gontijo Menezes é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Trabalha no governo federal há mais de dez anos com os temas de inovação, economia digital e políticas para as tecnologias da informação e comunicação.