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A sociedade e as autoridades do Poder Judiciário precisam prestar atenção no texto de uma proposta de emenda constitucional recém-aprovada no Senado que tem o objetivo de, supostamente, resolver a inadimplência de estados e municípios com os precatórios. A intenção da medida é de uma abrangência obscena e capaz de gerar resultados escandalosos. O Senado Federal quer, ao mesmo tempo, solapar todas as decisões do Supremo Tribunal Federal sobre o tema; impor uma forma de pagamento que privilegie o acerto com grandes empresas em detrimento de milhões de pessoas que têm prioridade nos pagamentos; e, ainda pior, autorizar estados e prefeituras a se apossarem de recursos em depósitos judiciais para o pagamento dessas dívidas.

O depósito judicial é dinheiro que empresas custodiam na Justiça durante ações para se defenderem, por exemplo, de uma cobrança indevida de impostos ou do valor excessivo na aplicação de multas. A lei determina isso para que não haja dúvidas sobre a intenção da parte. Portanto, tais recursos pertencem às pessoas físicas e jurídicas; não são do Poder Judiciário e muito menos do Estado.

Os recursos pertencem às pessoas físicas e jurídicas; não são do Poder Judiciário e muito menos do Estado

Mas há coisa mais grave. A PEC permite o avanço sobre 75% dos recursos que estão no sistema de penhora on-line, um tipo de depósito judicial, mas de natureza bem diversa da outra, pela agilidade com que pode retornar aos proprietários assim que começam a resolver a pendência que deu causa à penhora.

Os Tribunais de Justiça de todos os estados da Federação colecionam decisões em que impedem o Poder Executivo de botar a mão nesse dinheiro. Um dos principais fundamentos esclarece tudo: não há nenhuma garantia de ressarcimento imediato por parte do estado ou do município se a sentença lhes for desfavorável. Pelo contrário, vira precatório para ser pago em 20 anos – se o for.

Diante dessas evidências, as verdadeiras intenções do Senado Federal em transformar uma PEC em um tipo de esquema para políticos “pagarem” suas dívidas com dinheiro dos outros precisam ser apuradas.

O regime especial de pagamento que a PEC 159/2015 almeja implantar bate de frente com a modulação feita pelo STF ante a inconstitucionalidade do regime especial da Emenda 62, de 2009. O que se quer é voltar à quantia anual de 1% da receita líquida de estados e municípios para quitação dos precatórios. A corte suprema determinou 1,5%. Como na prática nada está sendo pago, a intenção verdadeira está nos meandros do texto, que determina a proibição de estados e municípios serem objeto de intervenção ou arrestos de numerários para cumprimento de suas obrigações para com os precatoristas.

O absurdo e abuso maior é o que se deseja facilitar por força de emenda à Carta Magna. Acreditando que rapidamente estarão com os recursos em depósito na Justiça e que a PEC vai derrubar a ordem cronológica para pagamentos, os senadores querem dar prioridade ao pagamento das dívidas com valor superior a 15% do montante dos precatórios (não alimentares). Estas são, em geral, grandes dívidas resultantes de disputas judiciais envolvendo grandes contratos e grandes empresas. E, também, uma quantidade importante de “derrotas” na Justiça em casos que precisam passar por minuciosa averiguação por corregedorias e tribunais de contas.

A manobra na lei está sobretudo no fato de que esses precatórios não são preferenciais, isto é, alimentares, aqueles devidos a pessoas físicas, cidadãos para quem o Estado deve pedaços de salários, indenizações com desapropriações, acidentes, mau atendimento etc.

De forma dissimulada, esta nova PEC altera decisão recente do STF ao autorizar a compensação somente de impostos devidos e inscritos até 25 de março de 2015, observadas as leis próprias do ente federado. Atentem bem a este ponto, pois o Estado nunca liberou compensação administrativa, mesmo tendo instrumentos legais para fazer isso. A observação “compensação somente de impostos devidos e inscritos até 25 de março de 2015” tenta legalizar o ilegal. Mantém um tipo de meia-compensação, para forçar a discussão no Judiciário, obrigar a empresa a fazer depósito e, assim, gerar mais recursos para serem apossados pelo mesmo poder que forçou a briga na Justiça.

Por tudo isso, estamos diante de uma afronta ao STF e a todas as leis básicas. E ela se tornou muito mais possível porque estamos todos com as atenções voltadas para o escândalo da Lava Jato. Nesse conjunto de investigações, muitos dos senadores estão envolvidos, foram citados. Em um momento no qual ansiamos para passar o país a limpo, o Senado forja as bases de uma sucessão de medidas que, na prática, têm a capacidade de desviar centenas de milhões de reais em custódia na Justiça para atender interesses políticos privados.

Agora, a trincheira de resistência contra esses absurdos muda de lugar. Primeiro, por ter sido alterada no texto original, a matéria volta para nova votação na Câmara dos Deputados. Se não cair nessa instância, restará à Presidência da República a sua capacidade de vetar. Caso não o faça, as atenções se voltarão para o STF.

Nelson Lacerda é advogado especialista em Direito Tributário.
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