Vista aérea da Esplanada dos Ministérios a partir do Congresso| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
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Diante da decadência qualitativa e institucional do Parlamento, estamos presenciando um entrechoque frontal entre o Planalto e o Supremo Tribunal Federal. A recente questão envolvendo a Medida Provisória n° 966/2020 – normatiza a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão no combate à pandemia da covid-19 – é autoexplicativa: ao invés do Legislativo cumprir seu papel político de analisar o cabimento, a relevância e a regularidade técnica do ato normativo de urgência, preferiu-se, talvez por comodismo prático, atravessar a Praça dos Três Poderes e provocar o egrégio STF a se pronunciar judicialmente sobre a medida impugnada.

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Ora, o artigo 62, § 5°, da Constituição federal expressamente determina que “a deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais”. Ou seja, a Lei Máxima da República impôs ao Parlamento o dever intransferível de analisar previamente a constitucionalidade de medidas provisórias; trata-se de competência técnica soberana das Casas legislativas que, em hipótese alguma, deveriam ser graciosamente repassadas ao Supremo Tribunal. Aliás, justamente por ser norma provisória, não fazia qualquer sentido provocar a Alta Corte a se pronunciar sobre um diploma legal sujeito a obrigatório controle legislativo.

Discorrendo sobre as prerrogativas e deveres parlamentares, em pronunciamento histórico de 11 de dezembro de 1968, o então deputado Paulo Brossard realçou que “à Câmara não cabe exonerar-se de suas responsabilidades na defesa das prerrogativas que são suas. O dever é seu e ela não pode transferi-lo a outro Poder. Não pode dar de ombros e confiar que o Supremo Tribunal vá defender prerrogativas que são suas, não dele”.

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Como se vê, ao Parlamento cabe o protagonismo da política e o consequente exercícios de suas prerrogativas; trata-se de soberana competência própria e, por assim ser, de mais ninguém. Registra-se que, por melhores que sejam as intenções do Supremo e por maior que seja a altura dos seus ministros, o fato é que sentenças judiciais não resolvem problemas políticos; podem amenizá-los ou agravá-los, mas a solução sempre será política, à luz dos preceitos superiores do diálogo e entendimento democrático.

Analisando o jogo do poder contemporâneo, com a distinta visão adquirida nos anos de judicatura no Supremo Tribunal britânico, Lord Sumption bem pontou que “as alternativas são algum tipo de autocracia e um regime legal criado pelos juízes”. Em outras palavras, diante da grave decadência institucional do Legislativo, a contemporaneidade apresenta um claro risco de retrocesso democrático, em favor de um sintomático decisionismo executivo ou togado. Embora não se negue e respeite a autoridade do Executivo e do Judiciário, o fato é que a amplitude plural da democracia exige a voz livre e independente dos Parlamentos, fazendo ecoar as diferenças que compõe o universo social para, ato contínuo, justificar a construção de pontes majoritárias que legitimam os governos responsáveis.

Em tempo, no regime presidencial, a institucionalidade do Legislativos se faz ainda mais importante. Tendo mandato por prazo determinado, o Presidente é uma espécie de monarca eleito que, somente nas hipóteses excepcionais de crime de responsabilidade (impeachment) ou de crime comum no exercício do cargo, deixará o alto posto a destempo. Logo, o presidencialismo é o regime que mais tolera erros políticos severos, pois, ao contrário do parlamentarismo, não possui válvulas de escape naturais para antecipar, sem traumas profundos, o fim de mandatos mal exercidos.

Na atual dinâmica do constitucionalismo democrático, cabe ao Congresso Nacional – e, não, às Forças Armadas – exercer o sério, moderado e decidido controle político sobre o Executivo, tendo, para tanto, o poder de instaurar comissões parlamentares de inquérito sempre que os fatos aconselhem a sua urgência e cabimento. Não se trata, logicamente, de prerrogativa banal, mas de instrumento constitucional positivo para o controle e sancionamento de eventuais desvios ou abusos de poder.

Lamentavelmente, face à aguda apatia parlamentar corrente, alguns procedimentos políticos regulares estão sendo atropelados para, ato contínuo, serem jogados no colo da Suprema Corte, dando relevo a um recorrente e não menos preocupante processo de hipertrofia judicial sobre assuntos democráticos. Tal perspectiva não é boa e impõe uma profunda reflexão sobre o atual balanceamento do poder republicano, sob pena de dar margem a perigosas experiências ortodoxas à estabilidade das instituições, bem como à própria capacidade da Constituição de bem mediar os entrechoques das forças e poderes de Estado.

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A política, em sua genuína expressão, vive e respira nos Parlamentos que, uma vez omissos, podem fazer da democracia uma triste refém de ímpetos descontrolados. Que o Congresso Nacional saiba honrar suas tradições e, por imperativo, cumpra, com coragem, sua responsabilidade histórica de garantir o primado do princípio democrático e de todas as liberdades públicas e privadas no Brasil, não se calando nem ficando de joelhos a pretensões arbitrárias, venham elas de onde vierem.

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr. é advogado e conselheiro do Instituto Millenium.