Um capítulo do livro Como o Mundo Funciona: Um Guia Científico para o Passado, o Presente e o Futuro (Intrínseca, 2024), foi apresentado pela Gazeta do Povo na seção Ideias, em 14/04/2024. O autor do livro é o cientista e analista político tcheco-canadense Vaclav Smil, com vasta obra sobre energia e alimentação, e o capítulo apresentado é o segundo do livro, intitulado “Comer combustíveis fósseis” ou Understanding Food Production: Eating Fossil Fuels, na edição em inglês, publicada pela editora inglesa Penguin Random House, em 2022.
O material é, sem dúvida, informativo, e tenta divulgar no Brasil a opinião sensata de que insistir em temas que parecem ecologicamente corretos é pura demagogia. Contudo, ignora tudo o que já se publicou no Brasil sobre o tema com ênfase na impossibilidade real, sob pena de uma catástrofe no abastecimento, de se passar de um padrão de agricultura tecnologicamente moderna para um padrão de agricultura orgânica, ou de adoção ampla da agroecologia. De outro modo, o processo civilizatório, queira-se ou não, é dependente de um modelo de produção de alimentos, fibras e madeiras que utiliza amplamente a mecanização, as sementes selecionadas e os insumos químicos. Comete-se assim uma injustiça com quem vem se dedicando a esclarecer a opinião pública brasileira acerca do que é possível ou não, do que é verdade ou não, no que se relaciona à conduta do denominado, genericamente, “agronegócio”. Com efeito, abstrai-se tudo que já foi publicado no Brasil na forma de livros, capítulos de livros, teses e artigos em periódicos científicos, criticando as narrativas difamatórias que rotulam os produtores rurais como inimigos da natureza, por utilizarem de insumos e equipamentos que elevam a produtividade das terras e garantem, simultaneamente, a segurança alimentar interna e os excedentes para exportação.
Autores como Xico Graziano, Maria Thereza Pedroso, Zander Navarro, Décio Luiz Gazzoni, Paulo Freire Mello e o que escreve este artigo, inúmeras vezes publicaram textos com argumentos contrários às acusações desprovidas de evidências que visavam a estigmatizar os agentes produtivos e os processos de produção que permitiram ao Brasil, como diz Evaristo Miranda da Embrapa, se converter, concomitantemente, em potência agrícola e potência ambiental. Vejam-se, então, os principais esclarecimentos e argumentos dessa comunidade de pesquisadores que se posicionaram contrariamente às ideias equivocadas sobre o agro-brasileiro:
1
É falsa a dicotomia entre “agronegócio” e agricultura familiar. Em verdade, integram o agronegócio todos os estabelecimentos agropecuários que visam a comercializar seus produtos, sejam eles geridos por empresas, gestão patronal, ou por famílias, gestão familiar.
2
A afirmação, feita a partir de dados macroeconômicos, de que existiria uma contradição entre exportar e atender às necessidades internas de alimento, é falsa. O que se exporta são os excedentes, o que vai além do consumo interno. Sem as exportações, o país não seria viável, pois são elas que garantem os saldos na balança comercial e na conta de transações correntes.
3
Divulgar que a agricultura de alta produtividade não seja uma escolha da sociedade em seu processo evolutivo é desconhecer a lógica e a história. O modelo convencional moderno de agricultura, que opera com insumos e equipamentos avançados, foi uma resposta à elevação da taxa de urbanização que teve início com a revolução industrial. A utilização de insumos químicos (fertilizantes e defensivos) se tornou uma necessidade a partir da revolução industrial e tem como marco as pesquisas de Justus Von Liebig da Universidade de Giessen (Alemanha), na metade do século XIX, que incorporaram à agricultura o denominado paradigma químico.
A elevação da taxa de urbanização provocou aquilo que Karl Marx chamava de "falha metabólica": menor presença de matéria orgânica no campo, com consequente redução de nutrientes para as plantas, impondo a necessidade de incrementar a produtividade com fertilizantes e defensivos químicos. A urbanização, reduzindo o número de produtores rurais, exigiu que a população remanescente no campo produzisse para ela e para todos os que migraram para cidade. Se durante a Idade Média a relação produtores/alimentandos era de 8 a 9 para 10, contemporaneamente, com cerca de 80% da população residindo nas cidades, ela passou para 2, 1,5 ou mesmo 1 para 10. Como não existe fórmula social para reverter a taxa de urbanização (a última experiência conhecida, que foi de Pol Pot no Camboja, resultou em um genocídio), não há como não depender de uma agricultura eficiente, pois não é possível voltar à Idade Média.
4
A adoção de modelos de agricultura com maior produtividade não se constituiu em ação deliberada dos agrônomos da Modernidade. A história das ciências agrárias ilustra que os agrônomos da Antiguidade Clássica e da Idade Média preceituavam que a agricultura utilizasse como nutrientes restos vegetais e dejetos animais, conduzindo processos produtivos essencialmente biológicos. Esse valor de busca de equilíbrio com a natureza permanece na comunidade de ciências agrárias, pois se intenta, incessantemente, superar o atual paradigma químico, desenvolvendo, por meio de pesquisas avançadas, pesticidas biológicos e fundamentos da agricultura de precisão com menor utilização de insumos químicos.
Como resultado já se têm indicadores de redução do consumo de carbono nos processos produtivos na agropecuária e índices crescentes de utilização de pesticidas biológicos, em substituição aos pesticidas químicos.
5
Afirmar que a agropecuária brasileira constitui uma ameaça à sustentabilidade é uma estultice. Os dados via satélite obtidos pelo Cadastro Ambiental Rural, confirmados pelas imagens da Agência Espacial dos Estados Unidos, a NASA, informam que graças ao cumprimento do previsto no Código Florestal, que estabelece reservas legais de vegetação nos imóveis rurais de acordo como os biomas, o Brasil tem, atualmente, uma área protegida no interior dos estabelecimentos agropecuários que chega a ser maior que a soma das áreas de proteção permanente, como os parques nacionais e as áreas indígenas.
O conjunto de dados mostra que o Brasil utiliza, apenas, 7, 6% do seu território com a agropecuária. A maior parte dos países utiliza 20% a 30% do território com agricultura. Os da União Europeia usam entre 45% e 65%. Os Estados Unidos, 18,3%; a China, 17,7%; e a Índia, 60,5%. Entre os países com maior extensão territorial, somente o Canadá, a Austrália e a Argélia utilizam menos área que o Brasil. Os agricultores brasileiros cultivam menos de 8% do território nacional, com tecnologia tropical e profissionalismo.
6
Um outro argumento em favor do agro-brasileiro é uma resposta à acusação de que o Brasil está entre os recordistas na utilização de defensivos. Esta falácia decorre da contabilidade bruta das importações desses insumos, abstraindo o fato de que eles são empregados em mais de uma safra, o que não é possível nos países localizados em latitudes mais elevadas. No caso do Brasil, por ser uma agricultura tropical, são utilizados em duas ou três safras; é possível eludir a sazonalidade, produzindo na totalidade das estações do ano, inclusive no inverno. Então, quando se estima o consumo por safra, consumimos bem menos que os nossos principais competidores.
7
Diferentemente do que se propala, o setor agropecuário não é fortemente subsidiado, nem depende exclusivamente de financiamento público. Ao contrário, o “agro” é que subsidia a indústria nacional, reduz o custo dos alimentos, tem uma das menores taxas de proteção no mundo e não utiliza crédito subsidiado.
8
Uma outra falsa narrativa que que visa a desacreditar o impacto social da oferta de alimentos pelo agro-brasileiro, é a que atribui à agricultura familiar a responsabilidade por 70% da produção agropecuária que iria para a mesa das famílias brasileiras. Os dados do último Censo Agropecuário e as estimativas econométricas realizadas pelo prof. Rodolfo Hoffman, da ESALQ-USP e da UNICAMP, refutam esta afirmação. Sem se reduzir a importância da agricultura familiar na geração de emprego e na fixação do homem no campo, este segmento do mundo rural responderia, na melhor das hipóteses, como algo entre 22 e 28% do abastecimento alimentar no Brasil.
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Por questão de justiça, convém informar que não só pesquisadores de países com maior renda, mas os do Brasil também, já vêm há algum tempo mostrando as impropriedades cometidas pela desinformação e pela ideologia no que se refere à agricultura contemporânea, sua importância no processo civilizatório e sua essencialidade na alimentação da população do planeta.
Amilcar Baiardi é engenheiro agrônomo e pesquisador, professor aposentado da UFBA e da UFRB, catedrático da Academia Brasileira de Ciência Agronômica e dá aulas na pós-graduação da Universidade Católica do Salvador.
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