Quando
um presidente da República tenta impedir um veículo de imprensa
de obter informações ou atua para reduzir sua credibilidade e
atrapalhar o desempenho de sua atividade jornalística, podemos
pensar em regimes autoritários de países estrangeiros ou em
uma (ultra)passada história brasileira. Entretanto, ataques deste
tipo, diretos e indiretos, feitos pelo chefe do Poder Executivo
nacional é o que temos visto nos
últimos tempos no Brasil. Sem
esconder o descontentamento com a imprensa, Jair Bolsonaro ataca
jornalistas uma vez a cada três dias, segundo dados apontados em
relatório da ONG Repórteres Sem Fronteiras.
Além disso, já protagonizou cenas deploráveis contra diversos profissionais da imprensa e busca transformá-los em inimigos comuns do povo. Certa vez, disse que a “imprensa jamais estará ao lado da verdade, da honra e da lei”. Em outra oportunidade, disse a um jornalista da Globo que tinha vontade de “encher tua boca com uma [censurado]”. Esses e outros episódios são facilmente encontrados nos tempos sombrios que vive a política brasileira.
Na
impossibilidade de “encher a boca de alguém de
[censurado]”, Bolsonaro investe contra veículos de imprensa
como pode, e a vítima da vez foi a agência jornalística Aos
Fatos,
especializada em fact
checking e
que busca justamente verificar a veracidade de conteúdo no
jornalismo independente. Tendo como um dos principais objetivos
fiscalizar o uso do poder político, a agência já desmascarou
diversas postagens e afirmações públicas do presidente. Como
retribuição, em 18 de janeiro, seu perfil no
Twitter foi
bloqueado por Bolsonaro.
Ainda que o perfil do presidente seja público e todas as postagens sejam abertas a qualquer usuário, a agência Aos Fatos tem audiência considerável e credibilidade de atuação, razão pela qual tomar conhecimento por outras fontes, sem efetiva participação, por meio de comentários e retweets, por exemplo, priva parte de sua colaboração no debate público. Além disso, a medida adotada tem um caráter primordialmente simbólico, sinalizando à agência que sua atuação está sendo observada e provocando reações negativas perante a cativa audiência bolsonarista.
Qualquer cidadão que possua uma conta privada ou pessoal em rede social pode optar por aceitar, excluir ou bloquear quem bem entender. Entretanto, a conta “Jair M. Bolsonaro” não pode ser tratada como a de um cidadão comum. Trata-se de um perfil que pertence ao presidente da República e que se dedica a disseminar notícias de interesse público, sejam elas verídicas ou delirantes.
Prova da peculiaridade da conta se traduz no fato de que simples postagens frequentemente fazem subir o número de compartilhamentos de determinados assuntos. Isso não apenas nas redes sociais, mas também por veículos da grande mídia, que, no papel de informar a população, acompanham o presidente e passam a integrar a nova praça pública, presente no meio digital.
Estudo realizado pelo Berkman Klein Center, centro de pesquisas vinculado à Harvard University, demonstrou como Donald Trump aperfeiçoou a arte de direcionar a imprensa a noticiar pautas de seu interesse. Por meio de provocações cirúrgicas, faz determinados assuntos entrarem no foco da viralização pela internet, especialmente pelas redes sociais. O conceito já virou uma máxima: “if the President says it, it’s news”.
Por
meio de levantamento feito com a ferramenta BuzzSumo, que
mede engajamentos nas redes sociais, também foi demonstrado
que, no Brasil, toda vez que Jair Bolsonaro mencionava o termo
“cloroquina”, o compartilhamento de publicações que
continham o termo disparava, seja na grande mídia ou nas
próprias redes sociais.
Assim, dizer que o presidente da
República pode bloquear o acesso de usuários a suas postagens
de ordem pública não é apenas insano, mas irresponsável.
Para aqueles que optarem por negar a materialidade dos argumentos,
deve-se apresentar aspectos formais: o STF já negou, por duas
vezes, a autonomia de Jair Bolsonaro para bloquear usuários em redes
sociais.
No Mandado de Segurança 37.132/DF, o ministro Marco Aurélio determinou o desbloqueio de um usuário no Instagram. Na ocasião, ressaltou que as postagens não têm caráter íntimo ou privado e que a participação social na governança é preceito básico da democracia, só podendo ser exercida com transparência. Asseverou também que a transparência deve ser aplicada ao ambiente virtual, com intuito de garantir o amplo debate e participação, sendo vedada a censura e a reprimenda, pelo poder público, ao exercício da liberdade de expressão pelo povo.
No Mandado de Segurança 36.666/DF, a ministra Cármen Lúcia votou pelo desbloqueio de um usuário no Twitter, considerando que “inventada a praça virtual tecnológica, há que se transferir a esse espaço virtual o reconhecimento de que a praça é do povo. Não há como cercear ou limitar o acesso de um a outro que nela se tenha resolvido acessar”. No voto, a ministra considerou que o ato de bloqueio interrompe a cadeia de debate e impede a participação dos usuários, ainda que tenham meios de leitura das publicações, já que as postagens são públicas. Assim, o usuário seria passivo e não poderia ter efetiva atuação.
Bloqueios arbitrários, contudo, não são exclusividades do agente público que ocupa a cadeira da Presidência. Há poucos meses, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) bloqueou um usuário em sua conta no Instagram, por fazer críticas recorrentes no perfil institucional da autarquia. Felizmente, em sede de decisão provisória de caráter de urgência, o juiz da 17.ª Vara Cível de Brasília reconheceu a inconstitucionalidade da conduta e determinou o imediato desbloqueio do usuário. Fundamentou, de maneira clara e eloquente, que a censura configura grave violação ao Estado Democrático de Direito, por inviabilizar simultaneamente o “exercício de informar, de buscar a informação, de opinar e de criticar”.
O problema também não é exclusivo do Brasil. Nos EUA, o ex-presidente Donald Trump tem uma longa lista envolvendo bloqueios de usuários críticos a ele ou a seu (des)governo. Após os sucessivos episódios, o Tribunal de Apelações em Nova York determinou a suspensão dos bloqueios por serem inconstitucionais à luz da Primeira Emenda norte-americana, que proíbe infringir seis direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e de imprensa.
É importante destacar que o bloqueio à agência Aos Fatos tem um outro significado igualmente relevante. Ao exercer o fact checking, atua como um importante agente na contenção de fake news. Ao publicarem pequenos avisos quanto à veracidade das informações nos diversos conteúdos postados, atua como um “cutucão” ou um “nudge” positivo sobre os indivíduos inseridos na rede mundial de computadores.
Diversos estudos revelam o expressivo impacto positivo de tais mecanismos. No mundo invertido onde agentes públicos pregam a desinformação e alvejam o princípio da publicidade, agradecemos a existência de agências privadas que buscam a informação real. A viralidade de notícias falsas, censuras e bloqueios, enquanto projeto de governo, mata.
Hoje, a soma de um vírus digital com um vírus real já equivale a mais de 200 mil mortes. Ao lado da pandemia da Covid-19, organizações internacionais têm apontado para a “infodemia”, a pandemia de desinformação em tempos de crise sanitária. Contra a Covid-19, é preciso apostar nas vacinas. Contra as fake news, em atuação com outros fatores, um bom remédio tem sido o trabalho desenvolvido pelas agências de checagem, como Aos Fatos.
Daniel Becker é advogado e diretor de Novas Tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA). Carlos Eduardo Ferreira de Souza é advogado na área de Proteção de Dados e Regulatório de Novas Tecnologias, mestrando em Teoria do Estado e Direito Constitucional e membro do Grupo de Pesquisa em Liberdade de Expressão no Brasil (Pleb/PUC-RIO). Pedro Gueiros é advogado na área de Proteção de Dados e Regulatório de Novas Tecnologias e mestrando em Direito Civil Contemporâneo e Prática Jurídica.
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