[Nota: esta coluna foi publicada primeiro na edição IX da The Irish Rover, uma revista estudantil da Universidade de Notre Dame. O autor agradece aos editores pela permissão da republicação no seu próprio site. Pode-se ler a edição inteira aqui.]
Meu colega e amigo, o Professor Dan Philpott, escreveu um longo ensaio em defesa da liberdade acadêmica na universidade, inclusive e especialmente nesta Universidade de Notre Dame. Ele se alia a outras vozes conservadoras católicas, como o Professor Robert George, da Universidade Princeton, e o nosso Professor Phillip Muñoz. O Professor George até é um dos fundadores de uma instituição, “The Academic Freedom Alliance”, que faz da defesa da liberdade acadêmica a sua missão, buscando, em específico, forjar uma aliança entre conservadores religiosos e vários “liberais clássicos” seculares, tais como os Professores Jonathan Haidt e Steven Pinker.
A razão de todas essas convocações e de uma iniciativa bem financiada é óbvia: as universidades se tornaram lugares de ortodoxia e de crenças cada vez mais homogêneas. Embora a filiação partidária seja um índice bem grosseiro e impreciso, a composição do corpo docente e discente das universidades de elite pende massivamente para a esquerda política. Uma pesquisa de 2020, feita pelo Harvard Crimson, descobriu que 38% dos professores de Harvard se identificavam como “muito liberais”, 41% como “liberais” e só 1% da faculdade de Harvard se identificava como “conservadora”. Uma montanha de outras pesquisas observa que as doações de campanha feitas por docentes das principais instituições para políticos democratas ultrapassa em muito as doações para os republicanos: em geral, algo de 90% ou mais em favor da esquerda política.
O resultado dessa composição política é bem documentado: os discentes e os docentes das universidades de elite e de muitas universidades importantes buscam, cada vez mais, rejeitar vozes inaceitáveis, tipicamente conservadoras, nas apresentações, debates e discussões. Desconvites a palestrantes, protestos nas formaturas e noutros eventos oficiais, bem como disrupções durante as apresentações, se tornaram banais num grande número de campi.
Assim, é compreensível que, diante dessa ferocidade crescente dos críticos, bem como da oposição desproporcional na academia, a liberdade acadêmica pareça a melhor proteção para as ideias e crenças desses professores.
A “liberdade acadêmica” que hoje predomina nas universidades foi defendida, desde sua primeira aparição, explícita e intencionalmente em oposição à clara identidade cristã das instituições e da sociedade
Vale perguntar, porém, como chegamos a este ponto. A premissa implícita de pensadores como Philpott, George e Muñoz é que essa nova “ortodoxia” dos campi representa uma traição da liberdade acadêmica, e a aplicação resoluta do ideal recém-batizado é sua correção natural. Mas o que eles não percebem é que essa nova ortodoxia não é um desvio daquilo que eles acreditam ser o propósito da liberdade acadêmica; em vez disso, é seu próprio objeto.
A “liberdade acadêmica” que hoje predomina nas universidades foi defendida, desde sua primeira aparição, explícita e intencionalmente em oposição à clara identidade cristã das instituições e da sociedade. Em segundo lugar, seu propósito não era, ao cabo, promover todas as visões, mas introduzir uma nova série de compromissos que estavam implícitos no conceito liberal de liberdade que se opunha diretamente ao conceito clássico e católico.
Muitos dos defensores católicos de hoje invocam os argumentos de Sobre a liberdade, de John Stuart Mill, como o texto fundamental em defesa da liberdade intelectual, incluindo a liberdade acadêmica. É notório que Mill articulou o “princípio do dano”, que proíbe a limitação de qualquer opinião, crença e até ação, a menos que se possa provar que alguém (usualmente mais alguém) sofreria danos com a expressão ou ação. Aparentemente neutro, esse princípio surgiu para defender a liberdade de qualquer forma de expressão ou crença, seja ela religiosa ou secular, normal ou bizarra.
No entanto, Mill era bem claro quanto ao fato de que esse ideal de liberdade tinha o propósito de deslocar culturas tradicionais e crenças antigas para favorecer o progresso. A liberdade não era apenas boa em si mesma; deveria servir para o avanço da transformação social e humana. O meio dessa transformação era o apoio e promoção da liberdade daqueles que queriam se envolver em “experimentos de vida”. Se tais “experimentos” fossem reprovados pela gente de crenças costumeiras (sobretudo a gente religiosa religiosos), Mill deixava claro que era preciso subverter o “despotismo do costume”, mesmo que por meio da imposição do poder político, se necessário.
Será surpresa, quiçá coincidência, que os “conservadores” e os religiosos tenham desaparecido das faculdades nos campi universitários?
Para Mill, uma vez liberta das limitações estupidificantes da sociedade tradicional, a capacidade humana da auto-criação se soltaria. A liberação de formas de individualidade espontâneas, criativas, imprevisíveis, amiúde ofensivas, era o objeto do elogio de Mill. Ele acreditava que os frutos de tal liberdade eram especialmente benéficos para a gente estudada, artística e empreendedora: aquela gente que se beneficiaria de uma sociedade marcada por instabilidade e mudança constante. Remodelando a ordem social num laboratório de experimentação, a sociedade poderia, afinal, ter experiência da História: o movimento de uma sociedade inteira rumo a uma trajetória progressista ascendente. Aqueles que defenderam as crenças do passado, que preservaram estilos de vida estabelecidos, que acreditaram que o costume era uma forma de preservar o senso comum, deveriam ser superados agressivamente. Será surpresa, quiçá coincidência, que os “conservadores” e os religiosos tenham desaparecido das faculdades nos campi universitários? O desvio para uma direção progressista resulta diretamente de todos os propósitos da “liberdade acadêmica”.
Mill tinha esperanças de que a transformação moral da humanidade seria a consequência da libertação dos costumes inquestionados. Acreditava que, uma vez que a liberdade destravasse as oportunidades para auto-criação, não só uns poucos indivíduos iriam se beneficiar: no fim das contas, haveria de emergir uma nova ordem social; na verdade, uma ordem moral e como que religiosa. Acreditava que, libertas da mão morta do passado, as gentes se tornariam mais esclarecidas, mais sociais e, por fim, comunistas, transcendendo suas identidades de egos individuais. A certa altura, adotou uma religião naturalística que culminaria numa “religião da humanidade”, voltada para a criação do céu na terra. Como sabemos bem demais hoje, tais ensinamentos deram origem a desastres e misérias quando inspiraram uma política voltada para o aperfeiçoamento da humanidade.
Uma geração mais antiga de educadores católicos percebeu os substantivos compromissos contidos na doutrina da liberdade acadêmica, e denunciou-a como uma prática que, ao cabo, minaria não só os fundamentos das instituições católicas, como também substituiria o sistema de crenças existente nos Estados Unidos por um outro credo. Uma instituição católica rejeitava a liberdade acadêmica como “um pretexto para ensinar sistemas que destroem toda liberdade”. Essa instituição era a Fairfield University, uma universidade jesuíta, que em 1959 “se gabava orgulhosamente de, como instituição católica, ensinar agora e sempre os princípios sobre os quais repousam toda lei, toda ordem e todo bom governo.”
Não, esses críticos da liberdade acadêmica não eram os predecessores dos “integralistas”; foram os reitores, professores e diretores de universidades como Georgetown e Fairfield, entre outros, que alertaram que suas fundações católicas seriam destruídas pela filosofia progressista substantiva contida nos argumentos da liberdade de expressão. Esses diretores e professores tinham vistas de longo alcance: hoje, a maioria das faculdades e universidades católicas mal pode ser reconhecida como tal; em vez disso, se limitam a macaquear seus aspirational peers seculares em todos os aspectos importantes. Notre Dame está trilhando rápido esse mesmo caminho.
O ideal de liberdade acadêmica sugere que as instituições humanas, tais como a universidade, podem ser organizadas com base no princípio da abertura e da neutralidade absoluta, desprezando quaisquer influências ou compromissos com alguma filosofia, crença e até fé.
Outra incompreensão da parte dos defensores católicos da liberdade acadêmica se segue dessa primeira. Os atuais defensores da liberdade acadêmica alegam que se trata de uma condição necessária para buscar a verdade a despeito dos esforços dos atuais progressistas para limitar o discurso nos campi. Segundo tais defensores, só permitindo todas as opiniões, todas as perspectivas, todos e quaisquer desafios, poderemos discernir a verdade.
Essa ideia presume duas coisas que uma instituição católica confiante deveria rejeitar. Primeira: a verdade não é totalmente desconhecida, e portanto não exige uma abordagem que presume que toda e qualquer opinião seja representada para desafiar qualquer ortodoxia. Segunda, e mais insidiosa: sugere que as instituições humanas, tais como a universidade, podem ser organizadas com base no princípio da abertura e da neutralidade absoluta, desprezando quaisquer influências ou compromissos com alguma filosofia, crença e até fé.
O Professor Philpott está correto quando argumenta que universidades devem ser instituições nas quais uma variedade de opiniões se mantém. Elas não deveriam ser câmaras de eco. No entanto, esse argumento negligencia a maneira real como os humanos interagem, satisfazendo-se em fazer alegações (como tantos outros) no âmbito da filosofia abstrata. Ele diz que os estudantes deveriam se sentir livres e bem-vindos para fazer quaisquer argumentos que desejem em suas aulas, em seus dormitórios, nos refeitórios. O mesmo vale para os docentes. Mas, é claro, qualquer estudante sensato sabe que tal condição de abertura “pura” nunca existe – e nenhum de nós deveria querer que existisse.
Todo aluno (ao menos entre os que vão a uma faculdade como Notre Dame) tem bom-senso quanto às limitações da expressão, que no mais das vezes não estão escritas em nenhum código legal, documento oficial ou guia estudantil. Tais limitações são estabelecidas pelas normas da comunidade humana na qual vivemos, que usualmente incluem um grau de deferência perante a autoridade paterna e professoral, respeito por outras pessoas e a admissão de que uma “sociedade polida” convida a evitar obscenidades, insultos e rebaixamento. Todos reconhecem as normas e crenças amplas que, em geral, não devem ser confrontadas diretamente, exceto em circunstâncias excepcionalíssimas (o princípio da igualdade humana decerto é um que se qualifica). Temos um bom-senso de como esses limites, numa conversa, podem se expandir e contrair a depender dos nossos interlocutores e circunstâncias imediatas, mudando de registro entre uma rusticidade ocasional com nossos amigos no bar e uma conversa refinada numa ocasião formal.
O que hoje chamam de woke é a nova ortodoxia religiosa, que substituiu por completo as crenças e práticas religiosas das instituições originais cujos prédios e lemas continuam o mesmo, mas cujos deuses mudaram
As universidades não são diferentes. Buscamos a verdade, mas também reconhecemos limites. As universidades sempre são, em algum grau, um collegium, que significa “comunidade”, “sociedade” ou “guilda” em latim. Uma comunidade se define por limites, normas, opiniões e crenças compartilhadas. Ao mesmo tempo em que somos teoricamente livres, estamos, na realidade, limitados pelo reconhecimento e pelo respeito aos nossos interlocutores. [Em inglês, “faculade” é college, daí o autor ter evocado o collegium, cujo plural é collegia. (N. t.)]
No fundo, as comunidades humanas (universidades inclusas) sempre se basearam numa crença comum compartilhada e, quase sempre, em alguma crença religiosa levada a sério. Em tais comunidades, é possível que haja (e provavelmente sempre haverá) dissidentes internos à tradição e estranhos de fora da tradição, mas espera-se que as normas que governam a comunidade sejam reconhecidas e respeitadas.
Através do século XX, a natureza dos collegia mudou: saímos das fundações religiosas das nossas faculdades coloniais e fomos para as normas acadêmicas da universidade moderna. Mas essas instituições não deixaram de ser governadas por normas e definidas por limites. Com o passar do tempo, elas vieram a adotar uma nova religião: a religião prometida pela “liberdade acadêmica”, a religião de John Stuart Mill, ou até a “religião da humanidade”. O que hoje chamam de woke é a nova ortodoxia religiosa, que substituiu por completo as crenças e práticas religiosas das instituições originais cujos prédios e lemas continuam o mesmo, mas cujos deuses mudaram.
Décadas atrás, quando as instituições ainda eram governadas por aqueles princípios cristãos mais antigos, os defensores da liberdade acadêmica execraram os limites à expressão, o veto a certos palestrantes, comparecimento obrigatório à capela, profissões de fé na extensão, exigências de estudos teológicos, normas morais que governam o comportamento estudantil, e assim em diante. Tiveram muito sucesso em derrubar as bases cristãs da maioria das instituições – não para terminar numa neutralidade “pura”, senão para substituir normas velhas por normas novas.
Em campi pelo país, Notre Dame inclusa, existe pressão para contratar e dar estabilidade aos professores que se conformem à nova religião woke
Hoje, testemunhamos muitos reitores da maioria das instituições acadêmicas clamando pela imposição de novos códigos de expressão, pelo banimento de certas ideias, adoração obrigatória dos novos deuses da Diversidade, Equidade e Inclusão, propostas para novas exigências centrais nessa nova “teologia”, e novas câmaras estreladas que investiguem infrações à nova teologia cometidas pelos estudantes e professores. Em campi pelo país, Notre Dame inclusa, existe pressão para contratar e dar estabilidade aos professores que se conformem à nova religião woke: argumentos amiúde defendidos por diretores e professores que há poucos anos execravam quaisquer esforços para contratar e dar estabilidade a professores católicos. Nenhuma comunidade humana pode ser neutra ou indiferente; em vez disso, precisamos perguntar qual será a fé que a anima.
As universidades constituem um tipo excepcional de comunidade. Seus membros são escolhidos: os docentes são contratados e os estudantes são admitidos. O collegium das instituições de elite de ensino superior é, hoje, definido pelos compromissos sólidos advindos das aspirações millianas de “liberdade acadêmica”: progresso, transformação social, aperfeiçoamento moral. Embora pareça “neutra”, a moderna pesquisa universitária consiste em limites definidos e compromissos sólidos. Docentes que desejem se unir a tal instituição devem se conformar ao ideal de pesquisa, cuja orientação fundamental é rumo ao progresso e transformação da sociedade. Os ideais millianos agora estão contidos nos compromissos fundamentais da instituição, e com o tempo irão transformar (e já estão transformando) cada instituição ao manter-se em suas crenças mais profundas e substantivas.
Uma vez que a criação de uma comunidade “neutra” é impossível, a resposta à religião “woke” que se espalha pelas elites que governam as principais instituições da nossa nação não é invocar a "liberdade acadêmica"
A consequência é óbvia: as missões e identidades distintas em lugares como Notre Dame vão deixar de existir se continuarem a se moldar pela religião alternativa da universidade moderna – aquelas contidas nos próprios compromissos da filosofia de John Stuart Mill. Como um sapo cozido devagar, o mesmo processo que substituiu uma tradição de fé mais velha por uma nova fé em quase toda faculdade e universidade avança diariamente em Notre Dame, agora acelerado pelo seu entusiasmado abraço da nova teologia do wokismo que ora substitui, rápido, o que quer que tenha sobrado de sua identidade católica.
Uma vez que a criação de uma comunidade “neutra” é impossível, a resposta à religião “woke” que se espalha pelas elites que governam as principais instituições da nossa nação não é invocar a “liberdade acadêmica”, ou torcer pela neutralidade. Tais argumentos, defendidos com sucesso por gente como J.S. Mill há quase dois séculos atrás, nunca buscaram criar uma sociedade “neutra” ou aberta. Em vez disso, eram argumentos que continham uma série de compromissos substantivos com uma ordem social e política fundamentalmente diferente daquela governada por normas cristãs: individualismo, progressismo, materialismo, cientificismo, utilitarismo, todos conducentes à “religião da humanidade.”
Ao cabo, argumentos abstratos quanto à liberdade acadêmica são secundários quanto à questão de que tipo de comunidade, que tipo de collegium, distinguiria uma instituição católica. Um collegium no qual predomine um profundo compromisso com o ensino católico não irá limitar a liberdade acadêmica; em vez disso, irá compartilhar um entendimento dos limites corretos da comunidade – do mesmo jeito que a nova academia “woke” faz. É claro que haverá desacordos e debates, mais tais debates tomariam lugar numa cosmovisão compartilhada. Podem-se e devem-se confrontar pontos de vista de fora do collegium, mas tais perspectivas não devem ser vistas com indiferença, nem postas em pé de igualdade. A classe sacerdotal da nova religião progressista entende corretamente que uma universidade, inevitavelmente, tem uma crença predominante e uma cosmovisão. Por outro lado, os católicos mais articulados de hoje buscam erigir um escudo que protegeria gente que, segundo devemos acreditar, não faz a menor ideia do que seja a verdade.
Aqueles que pretendam promover, em particular, uma instituição robustamente católica não deveriam adotar as armas dos seus oponentes, confundindo-as com escudos. Em vez disso, um argumento totalmente católico deveria ser feito contra as injustiças, hipocrisias, decadência moral, degradação social, depravação econômica, reducionismo utilitarista, tecnologismo anti-humano e o absoluto estado vicioso da ordem atual. Não devemos nos posicionar sobre a ilusória areia movediça da neutralidade, senão sobre os sólidos fundamentos da verdade.
Patrick Deneen é professor de Ciência Política da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, e autor de "Por que o liberalismo fracassou?" (Âyiné, 2020). Este texto foi traduzido do Post Liberal Order com autorização.
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