O contrabando no Brasil, além de causar enormes perdas econômicas aos cofres públicos e ao país – as cifras alcançaram R$ 300 bilhões em 2021, segundo o Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP) –, também tem gerado um impacto social gravíssimo em cidades brasileiras localizadas na fronteira com o Paraguai, em decorrência do mercado ilegal de cigarros. Um enorme contingente de menores de idade tem sido cooptado para essa atividade ilícita, resultando em altos índices de evasão escolar e no agravamento dos índices socioeconômicos nessas localidades.
Essa é a conclusão de um estudo inédito elaborado por este articulista a partir de uma pesquisa feita junto aos principais atores do entorno do contrabando de cigarro em Foz do Iguaçu e Guaíra (PR) e Ponta Porã (MS), cidades fronteiriças que exibem altos índices de contrabando de cigarros ilegais, incluindo profissionais do Ministério Público, Receita Federal e centros socioeducativos, além de assistentes sociais, secretários municipais, professores, advogados, policiais civis, militares e rodoviários, diretores de ONGs e institutos.
Entre as justificativas e motivações que levam esses menores a atuarem na prática do contrabando de cigarro, transportando, armazenando e fazendo a segurança da mercadoria ilícita, predomina a ideia de “ganho fácil”. A legislação, por sua vez, de acordo com esses menores, que na sua maioria é do sexo masculino e oriunda de famílias de renda mais baixa, impõe penalidades brandas, já que o comércio ilegal de cigarros tem “menor poder ofensivo”.
O crime de contrabando é muitas vezes confundido com descaminho e sua pena é baixa ou inexistente. Sob esta perspectiva, o contrabando é considerado um ato corriqueiro, uma forma de o menor e seus familiares terem uma fonte de renda
Ou seja, a atividade é vista como a de um criminoso de baixa periculosidade se comparada à de um traficante de drogas ou de armas. O crime de contrabando é muitas vezes confundido com descaminho e sua pena é baixa ou inexistente. Sob esta perspectiva, o contrabando é considerado um “ato legal”, corriqueiro, um mero “transporte de mercadorias”, uma forma de o menor e seus familiares terem uma fonte de renda para suprir suas necessidades de consumo e sobrevivência.
Para agravar o cenário, há um aumento expressivo dos índices de evasão escolar, bem mais altos que a média nacional. Enquanto no Brasil a evasão no ensino médio foi de 8,60% em 2017/2018, de acordo com os últimos dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em Ponta Porã (MS) o número de crianças que deixaram a escola no ensino médio foi quase o dobro da média nacional (16,20%). Já no estado do Mato Grosso do Sul chegou a 12,10%. Em Foz de Iguaçu (PR) foi de 9,10%; em Guaíra, de 9,70%.
Ou seja: o que antes era um problema de evasão de divisas e de saúde pública, agora, por tratar-se de um crime que utiliza mão de obra infantil e juvenil, passa a ser um fator de risco de segurança de graves contornos socioeducacionais.
Para mitigar os impactos desse cenário assustador, que compromete o presente e rouba o futuro de centenas de menores, é necessário um esforço coordenado das instituições através da adoção de um conjunto de políticas de educação e assistência social, de geração de emprego e renda, além da revisão tributária sobre o cigarro, visando a enfraquecer o mercado ilegal e a erradicar o contrabando. Sabe-se que no Brasil a taxação sobre o cigarro varia de 70% a 90%, enquanto no Paraguai fica em apenas 20%. Quase metade (48%) dos cigarros consumidos no Brasil vem da ilegalidade, segundo o Ipec.
A institucionalização de uma rede de proteção deve ser, portanto, mais efetiva, já que o enfrentamento ao mercado ilegal perpassa por uma complexa reestruturação não só das famílias, mas também pela implementação de políticas públicas que possam maximizar o atendimento das necessidades básicas e de qualificação profissional dessa população. Do contrário, a lógica perversa da invisibilidade do contrabando de cigarro, usando o trabalho de crianças e adolescentes, continuará fazendo parte do contexto sociocultural dessas cidades, perpetuando-se geração após geração e comprometendo o futuro dos menores de baixa renda que residem nas regiões fronteiriças brasileiras.
Pery Shikida é economista e professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste).